terça-feira, 8 de setembro de 2015

Pelos Caminhos do Olhar...



Certa vez, conversando com Miguel Nenevé sobre um livro que ele estava escrevendo e que em breve seria publicado, esbocei o desejo de um dia, quem sabe,  ter uma foto de minha autoria publicada em um livro dele, talvez a capa...
Miguel é catarinense, e eu o conheci em João Pessoa, quando ainda cursava o último ano da faculdade de Medicina e ele o mestrado em Letras. Hoje ele é Doutor em Letras (Inglês e Literatura) e professor da Universidade de Rondônia. Tem vários livros e artigos acadêmicos publicados, e também livros de poemas (Folhas Mortas)  e contos (Outros Tempos e Outras Histórias, Antes que Anoiteça e Você Ouviu a Coruja Piar?)
Eu sou médica, atuo em Saúde Pública e fotografo por paixão. Nunca tive a intenção de usar a fotografia como meio profissional, mas cada dia mais me encanto com essa arte. Por isso, de uns tempos pra cá, passei a me interessar mais em aprender as técnicas e a apurar mais o olhar. Sim, porque não é só um bom equipamento que faz uma boa foto! É preciso saber enxergar o que os outros não veem...
Venho investindo quase todo meu tempo livre nesse exercício, que me dá prazer. Sempre que posso saio por aí, na companhia de amigos, em busca de novas imagens. Às vezes voltamos ao mesmo lugar já fotografado, e mesmo assim conseguimos captar novas imagens, novos momentos. Uma foto nunca é igual, mesmo tirada no mesmo local. A fotografia é capaz de contar histórias, de inspirar poemas. Eu não sou poeta, mas as vezes consigo enxergar a poesia por trás da foto. Só não sei traduzir com palavras. E foi isso que Miguel fez. Quando ele me propôs, em vez da capa do livro, fazermos o livro inteiro de fotos e poemas, achei que estivesse brincando... mas não estava!!
E então eu passei a acreditar, por que não? O livro foi surgindo, fomos aos poucos selecionando as fotos, à medida que eu saía por aí, caçando imagens. Para cada foto, ele fez um poema.
Muitas fotos foram tiradas nas expedições que participo com os amigos. Outras, nas diversas oportunidades que tenho de fotografar, quando saio por aí, em viagens com a família. E veio Santa Catarina, terra de Miguel, que não poderia ficar de fora! A linda e verdejante Campo Alegre é um verdadeiro paraíso, com imagens de tirar o fôlego.  Um privilégio poder fotografar aquele lugar!
E o livro finalmente ficou pronto... quentinho, saindo do forno! Um sonho se realizando...
Gostaria de agradecer, primeiramente a Miguel, idealizador do livro. Sem ele, eu jamais teria tido essa coragem de ir em frente... obrigada por acreditar, pelo carinho em escrever para cada foto um poema com exclusividade. Obrigada por não deixar morrer o sonho!
Agradeço também ao nosso editor, Abel Sidney, que tanto nos incentivou e a Carla Dias, nossa diagramadora, que mesmo morando no Canadá, conseguiu captar nossas ideias. Aos amigos fotógrafos, que a princípio não tendo conhecimento do projeto, me ajudaram com dicas a cada saída fotográfica. A Aphoto, na pessoa do presidente e professor Alex Gurgel.  E aos amigos e familiares, que sempre acreditaram e me incentivaram.
No próximo dia 29 de setembro de 2015 o livro estará sendo apresentado em Natal, as 19 horas, na Pinacoteca do estado do RN.
Espero vocês. Espero que gostem. Foi feito com muito carinho.

Miguel Nenevé

Veronica Barreto





quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Ah, essa minha paixão...

Aproveitando que nesse mês de agosto é comemorado o dia mundial da fotografia, resolvi escrever um pouco sobre essa paixão que tenho desde os tempos de infância. Acho que herdei do meu pai  esse interesse pelo mundo fotográfico. Lembro que, quando criança, adorava ouvir as histórias que ele contava de quando tinha trabalhado como “lambe-lambe” na feira, e de como as pessoas gostavam de ser fotografadas. E ele adorava  registrar tudo que podia. Na época, nem todo mundo tinha acesso a uma câmera fotográfica, geralmente só quem trabalhava profissionalmente,  mas ele fazia questão de periodicamente chamar um fotógrafo para registrar o meu crescimento e os nossos momentos. Mandava minha mãe colocar uma “roupa de domingo”, me enfeitava toda, e lá íamos nós, para os nossos registros. Graças a ele, hoje tenho relíquias que nem todo mundo da minha época tem.
E eu cresci assim, a princípio gostava de sair nas fotos, mas depois fui querendo estar também por trás da câmera, e não perdia nenhuma oportunidade de fotografar, mesmo com as câmeras emprestadas das amigas. Quando adolescente, às vezes comprávamos um filme de 36 poses, e saíamos pela cidade, fazendo os nossos registros. E depois, mandávamos revelar as fotos  e ficávamos dias e dias na expectativa de ver se elas iriam ou não prestar (muitas vezes, das 36, apenas duas ou três se aproveitavam). E assim, fui acumulando registros dos bons momentos que tive durante a vida. Acho que dos meus amigos do tempo de colégio eu sou uma das poucas pessoas que tem um bom acervo fotográfico, que daria para contar uma história sem palavras mesmo, só com imagens, muitas delas já desbotadas, mas não menos importantes.
Quando concluí o curso de medicina, no lugar do anel de formatura, por opção minha,  ganhei do meu pai a minha primeira câmera fotográfica, uma Yashica, que guardo até hoje como um tesouro! E aí, com algumas dicas do meu amigo Ronildo Rocha, outro apaixonado por fotografia, comecei a fazer os meus clikes.  Com ela fiz inúmeros registros, minhas aventuras na Amazônia, no tempo em que morei no Pará, quando esperava mais de um mês para receber de volta um filme que tinha que ser enviado pelo correio pra revelar, e às vezes, depois da espera, a decepção de saber que as fotos haviam sido extraviadas pelo caminho... ou receber no lugar das suas, as de outra pessoa, que haviam sido trocadas no laboratório.
Nos últimos tempos, com o advento da fotografia digital, as coisas mudaram e tudo ficou mais fácil. Podemos ver na hora e temos a oportunidade de repetir a foto, se não ficar do nosso agrado, além de só passar pro papel aquelas que realmente nos interessam. E todo mundo virou “fotógrafo”. Mas para fazer uma boa foto, não basta ter um bom equipamento. Tem que ter o “olhar”, saber enxergar a beleza que existe em uma cena comum, aproveitar o momento, pois ele jamais se repete da mesma maneira.
A fotografia nos faz viajar sem sair do lugar, eterniza momentos, ajuda a preservar a história. Faz poesia sem palavras.
Apesar de todo esse interesse por fotografia, só recentemente comecei a me aprofundar um pouco no assunto. Aproveitei a “folga” que tive por estar convalescente de uma cirurgia, e resolvi fazer um curso. E comecei a ver minhas fotos com um olhar mais crítico, e descobri o quanto eu ainda tinha a aprender!! A princípio, o curso era apenas para aprender a usar melhor os recursos da câmera e para mim o curso básico serviria. Mas logo me descobri querendo fazer o avançado, e a querer melhorar o equipamento.  Estudar, praticar e investir em equipamentos é essencial para quem quer melhorar sua arte. Aprender com os erros. Encontrei no grupo da APHOTO, pessoas com os mesmos interesses que eu. Gente das mais diversas profissões, que tem em comum o amor pela fotografia. Participar das expedições tem sido incrível! Sair de casa no alvorecer e só voltar depois do por do sol, com o cartão de memória cheio de imagens, fisicamente cansada, mas feliz.

Ainda tenho um mundo a aprender. Mas aos poucos, praticando, estudando, trocando ideias com os amigos, saindo da zona de conforto, como diz o professor Alex Gurgel, vou tentando e espero evoluir cada vez mais.    

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Procura-se um passaporte!


O aeroporto estava lotado. Filas imensas para o embarque aos mais variados destinos. Pessoas circulavam pelo saguão de desembarque, enquanto aguardavam a chegada de familiares ou amigos.
Gosto de observar as pessoas no aeroporto. Lugar de reencontros e despedidas, ponto de chegada e ao mesmo tempo de partida. Enquanto uns se abraçam, felizes por estarem chegando, outros choram de tristeza por partirem, na incerteza de um dia se encontrarem novamente. E tem aqueles que circulam sozinhos, sem ninguém para se despedir ou acolhe-lo na chegada. Uns chegam ansiosos, buscando com o olhar algum desconhecido portando um cartaz com o seu nome: Sr. Fulano de Tal...
Eu estava ali com os meus filhos, prestes a realizar um grande sonho: viajar para Paris!! O painel do aeroporto já avisara que o voo estava atrasado, mas o “check in” já estava aberto. A fila estava gigantesca, e eu, que costumo aguardar minha vez com paciência, dessa vez desobedeci às regras e passei na frente de todos, como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo. Ninguém pareceu se importar muito com este fato, talvez por saber que o voo estava atrasado.
A funcionária da empresa aérea nos atendeu com um sorriso. Enquanto colocávamos as malas na balança, ela nos pediu os passaportes. Abri minha bolsa e gelei!! Os passaportes não estavam lá! Agora lembrava perfeitamente quando, na ansiedade dos preparativos da viagem, resolvi mudar de bolsa. Os três passaportes haviam ficado comigo, justamente para evitar esquecimentos. Mas na última hora,  achei que seria melhor levar uma outra bolsa e terminei esquecendo...
A funcionária me olhava com cara de quem não acredita no que está acontecendo. Como alguém pretende viajar para fora do país e esquece justamente o passaporte?? Mas eu é que não acreditava que isso pudesse estar acontecendo! Logo eu, que sempre que viajo, costumo arrumar tudo com muita antecedência... Anoto tudo, reviso a bagagem, geralmente levo mais do que preciso... Justamente agora, “pisei na jaca”!!
Enquanto meus filhos me lançavam olhares de desespero, eu tentava explicar à moça o que havia acontecido. Mas não adiantava nada, ela apenas ouvia e balançava a cabeça, lamentando o ocorrido. Enquanto isso, as pessoas na fila já começavam a reclamar da demora.
- Senhora, eu preciso atender as outras pessoas. O que eu posso fazer para lhe ajudar é o seguinte: como o voo está atrasado, vou dar entrada na sua bagagem, enquanto a senhora tenta ir buscar os passaportes antes que encerre o check in. Mas tente não demorar muito.
Agradeci imensamente, agora feliz com o atraso do voo. Minha casa não era tão distante do aeroporto, e quem sabe, com um pouco de sorte, conseguiria chegar a tempo. Peguei os tickets das bagagens e saí com meus filhos, quase em disparada, em direção ao estacionamento, onde havia deixado o carro.
O pátio do estacionamento era imenso e estava lotado! E no desespero, nós não conseguíamos encontrar o carro. Resolvemos nos dividir e cada um procurar em um setor, e quem encontrasse mandaria um sinal pelo celular. Enquanto isso, o tempo corria...
Depois de vários minutos de procura, que me pareceram horas, encontrei um micro-ônibus estacionado, e o motorista pareceu me reconhecer. Olhou para mim, surpreso, e perguntou o que eu estava fazendo ali. Então lembrei! Nós não havíamos vindo para o aeroporto de carro, e sim, no micro-ônibus da agência de viagens... Tentei ligar para os meus filhos, avisando que precisávamos pegar um taxi, mas a chamada de celular não completava. Maldita operadora, que sempre nos deixava na mão, nas horas mais inconvenientes! Enquanto eu andava desesperada por entre os carros, tentando encontrá-los, o tempo andava a galope...
Finalmente, depois de muita angústia, avistei-os vindo em minha direção. Eles também haviam acabado de lembrar que não havíamos vindo de carro. Culpa do estresse, essa amnésia temporária. Em vão, procuramos um taxi. Mas, parecia que todos eles tinham desaparecido...
Olhamos o relógio e chegamos a conclusão de que não havia mais tempo suficiente. O jeito era pegarmos de volta nossa bagagem, antes que ela embarcasse sozinha para Paris... se tivéssemos sorte, remarcaríamos nossas passagens para o dia seguinte, e não perderíamos a reserva do hotel...
Enquanto voltávamos para o salão de embarque, um som insistente perturbava os meus ouvidos. Tentei não dar importância, mas ele soava cada vez mais alto... Era o despertador, avisando que era hora de acordar!! Tudo não passara de um sonho...

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Perdido na selva - protegido por Deus

      A história que vou contar aconteceu com um amigo meu. Quando o conheci, na época que fomos transferidos da Amazônia para o Rio Grande do Norte, ele vindo do Amazonas e eu do Pará, ele já era “famoso” na Fundação SESP, como o “médico que escapara da selva amazônica”. Na época que chegamos ao Rio Grande do Norte fomos trabalhar em cidades diferentes, e só depois de alguns anos, quando fomos transferidos para a capital, ficamos amigos e um dia ele me contou a história como realmente aconteceu. Espero que minha memória não falhe e eu consiga transmitir aqui tudo o que ele me contou.

      Ilner morava em uma cidade do Amazonas, chamada Boca do Acre. Trabalhava na Unidade Mista da Fundação SESP.  Certo dia, houve um acidente na estrada próxima à cidade, em que faleceram o promotor e seu filho de 12 anos. A filha do juiz, que também viajava com eles, ficou em estado grave, e precisava ser removida para Manaus, pois o hospital local não dispunha dos recursos necessários para tratá-la. A família fretou um taxi aéreo, um avião monomotor de seis lugares, e ele foi o médico escolhido para acompanhá-la na viagem. Somente ele e o piloto, pois os quatro assentos restantes do avião foram retirados para acomodar melhor a paciente.
      A viagem até Manaus foi tranquila, e eles chegaram com menos de quatro horas de vôo. Logo a paciente foi acomodada no Hospital dos Acidentados, e antes de ir para o hotel, ele passou em uma agência da VASP e comprou sua passagem de volta para o dia seguinte. À noite, porém, encontrou com o piloto, que ficou surpreso ao saber que iria retornar sozinho. “O avião foi fretado para que eu retornasse com o senhor a Boca do Acre e eu tenho a obrigação de levá-lo de volta”. Ele ainda questionou que já havia comprado a passagem, mas o piloto insistiu e ele terminou aceitando. No dia seguinte, logo cedo, cancelou a passagem que comprara e perto de meio dia foram para o aeroporto, porém, a liberação do vôo demorou e eles só decolaram já depois das 14 horas. Só depois que estavam em pleno vôo ele ficou sabendo que, para conseguir a liberação,  o piloto informara que o vôo seria para Porto Velho, e não Boca do Acre, pois nesse último o aeroporto não tinha condições de pouso noturno, caso houvesse algum imprevisto. E o imprevisto aconteceu. Duas grandes tempestades fizeram com que o avião saísse da rota, e o piloto ficou perdido, desorientado, sem saber onde estava.
      Já era noite e o piloto informou que iria voar mais alto, pois assim ficava mais fácil de identificar as luzes de alguma cidade. Mas tudo o que conseguiam era ver as estrelas acima deles e a escuridão lá embaixo. Depois de várias horas voando, o combustível acabando, o piloto informou que iriam cair, e deu as instruções de como se posicionar na hora da queda, o que levaria alguns minutos. Enquanto o avião planava, perdendo altura, ele se lamentava e se desculpava o tempo todo por ter feito o doutor mudar de ideia para viajar com ele. Por volta das nove horas da noite, o avião caiu.
      Ilner acordou no chão, a alguns metros do avião. Os faróis ainda acesos iluminavam a selva. Tentou se levantar, mas não conseguiu, pois sentia fortes dores e ao palpar o tórax, sentiu que havia quebrado algumas costelas. Mas estava respirando bem, o que indicava que provavelmente não tinha havido perfuração pulmonar. Chamou pelo piloto, mas não houve resposta, apesar de ouvir algum barulho vindo do avião. Então resolveu dormir ali mesmo, no chão.
      Quando amanheceu, com muito esforço, ele conseguiu se levantar, ainda meio tonto, segurando-se em algumas árvores. Sentiu que também sangrava pelo supercílio, mas não era um corte muito profundo. Conseguiu chegar até o avião e percebeu que o piloto estava vivo, porém semi-consciente, muito agitado e sangrando muito pelo nariz e ouvido, o que significava que tinha havido traumatismo craniano. Ele tinha alguma medicação de urgência e aplicou no piloto, porém o quadro se agravava cada vez mais. Tinha também alguns frascos de soro glicosado, e de vez em quando fazia com que ele  bebesse um pouco, mas isso não adiantava muito, cada vez mais ele piorava e ia aos poucos perdendo os reflexos.  Assim ele passou o domingo, e no dia seguinte, logo cedo, o piloto faleceu.
      Não tendo mais o que fazer, e sentindo que não seria encontrado, pois a mata era completamente fechada e dificilmente o avião seria visto lá de cima, resolveu sair em busca de ajuda, rezando para não encontrar alguma onça, cobra ou outra fera  pelo caminho. Não levavam comida no avião e ele pegou apenas sua mochila com algumas roupas e seus documentos . Sua esperança era encontrar algum rio, pois assim ficaria mais fácil de encontrar alguém. Durante vários dias caminhou na selva, com fome, pois não sabia quais as raízes de plantas eram comestíveis. Encontrou muitos açaizeiros, mas não tinha como cortar o palmito, nem como subir para cortá-los na parte de cima, por causa das costelas fraturadas. Quando sentia sede, bebia a água da chuva acumulada nas folhas das plantas. Uma certa vez, percebeu que estava andando em círculos, pois encontrou uma camisa encharcada de sangue que deixara no dia anterior, quando trocou para se livrar das mutucas que o atacaram.
      No final da tarde da quinta-feira, caminhando no meio de um seringal nativo, avistou uma vala e quando se aproximou, viu que tinha uma pequena poça de água. Era um “olho d’água”!! Como já era quase noite, resolveu dormir ali mesmo. No dia seguinte, caminhou seguindo o trajeto da água, que terminou se transformando num igarapé!
      Seguiu o tempo todo o igarapé, às vezes tendo que caminhar dentro da água,  até que no final da tarde, teve a maior emoção da sua vida: encontrou um rio! O sol estava se pondo, e o céu estava lindo, com cores vermelho e laranja refletindo na água do rio, e aquele por do sol foi o mais lindo que ele já vira na sua vida! Rezou, agradecendo a Deus pela graça alcançada, e pedindo que aparecesse alguém para salvá-lo. Ficou ali, onde dormiu, para no dia seguinte continuar sua caminhada. Suas esperanças estavam renovadas, pois com o rio, certamente a qualquer hora ele encontraria alguém!
      No sábado, caminhou o dia inteiro seguindo a margem do rio, e não encontrava ninguém! No final da tarde, cansado e fraco, pois já era o sétimo dia que estava sem se alimentar, sentou à margem do rio e rezou mais uma vez, pedindo a Deus que mandasse alguém. Já estava quase cochilando quando escutou o barulho de um motor de barco. Era um barco pequeno e ele começou a gesticular, mas o homem parecia que não ia parar. Felizmente o rio era estreito e ele conseguiu se identificar, dizendo que era médico e que tinha sofrido um acidente de avião, e que precisava de ajuda.  O homem, que já estava sabendo do acidente,   se aproximou e disse:
      - Ainda bem que o senhor se identificou, senão eu não teria parado. Como aqui é uma área desabitada, é muito comum bandidos brigarem em  outra região e virem se esconder por aqui. E sua aparência não está das melhores, com esse olho roxo e sujo de sangue, poderia muito bem ter saído de uma briga...
      Ilner agradeceu e pediu ao homem que o levasse à cidade mais próxima, mas ele disse que o levaria até a casa de um seringalista, pois a cidade mais próxima ficava há vários dias de viagem de barco. Perguntou se estavam no Amazonas e ele disse que sim, e a cidade mais próxima era Carauari, e levariam mais de uma semana para chegar até lá.
      Chegando à casa, foram acolhidos pelo seringalista, que já estava sabendo do acidente, porém, segundo ele, as buscas estavam sendo realizadas em outra região.  Ainda demorou mais de uma semana, para que Ilner chegasse à cidade de Carauari. De lá, conseguiu se comunicar com a Coordenação Regional da Fundação SESP, pedindo que avisasse à sua família que estava vivo. Viajou no avião da TABA até Manaus, onde foi recebido pelo diretor regional do SESP e por uma infinidade de repórteres.
      Somente setenta dias depois do acidente, seringueiros contratados pela empresa de táxi aéreo encontraram os destroços do avião e os restos mortais do piloto.



( Em memória de Ilner Coelho, que faleceu em 2003, vítima de um Infarto Agudo do Miocárdio)

sábado, 21 de janeiro de 2012

Falando sobre coerência: Palavra X Atitude

“Não é preciso mostrar beleza aos cegos, nem dizer verdades aos surdos. Basta não mentir para quem te escuta, nem decepcionar os olhos de quem te vê! As palavras nos conquistam temporariamente, mas as atitudes nos ganham ou nos perdem para sempre.”

Não sei quem escreveu essa frase.  Vi publicada no mural de alguém, no Facebook, e me chamou a atenção. Virou uma verdadeira epidemia, essas frases que se colocam nas redes sociais, uma forma moderna de “para choque de caminhão”. Algumas espirituosas, outras de humor meio negro, mas o certo é que de uma forma ou de outra, todo mundo termina lendo,  e muitas vezes até compartilhando. Eu mesma faço isso de vez em quando. O certo é que  a frase me levou a refletir. Quantas vezes escutamos de alguém palavras de “solidariedade”, mas na verdade, quando precisamos de “atitude”, essas pessoas somem, deixando apenas o eco das palavras em nossos ouvidos. E o eco desaparece, transfomando-se aos poucos apenas em um zumbido longínquo, e terminamos por esquecer do que foi dito (e de quem disse). É a incoerência entre as palavras e as atitudes.  E nada pior do que perder a credibilidade em alguém. É quase impossível recuperar depois.
Melhor do que palavras, são as atitudes. E estas, muitas vezes, vem de quem menos esperamos. Pessoas que não sabem dizer “eu te amo” com palavras, mas provam com ação. Que entendem um pedido mudo de socorro. Que estão do nosso lado quando precisamos.
E  tem aqueles que não nos decepcionam nunca, que dizem estar conosco e realmente estão, que seguram na nossa mão no momento do desespero e não nos deixam cair quando estamos a beira de um abismo. Que estão sempre prontos a nos enxugar as lágrimas, ou melhor, que fazem tudo para não deixá-las cair.
Mas devemos ter cuidado com o que esperamos  das pessoas. Das expectativas que criamos em torno delas.  As vezes nos decepcionamos com alguém, por esperarmos  uma atitude que na verdade seria o que gostaríamos de receber em determinada ocasião, ou o que faríamos se a situação se invertesse, mas não é o que o outro é capaz de dar, ou para ele(a), aquilo nem é tão importante assim... E terminamos nos frustrando, nos decepcionando, tudo porque queríamos que a pessoa tivesse uma atitude que seria a nossa e não a dela.
Enfim, o ideal seria que todo mundo fosse coerente – palavras e atitudes. Infelizmente, nem sempre isso acontece. E continuamos com o nosso trabalho de pouco a pouco conhecer as pessoas. E isso é um longo e árduo trabalho. Porque muitas vezes, a pessoa que mais precisamos conhecer não conhecemos direito: nós mesmos.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Sou humano, logo, sou imperfeito


Atualmente, fala-se muito em humanização na assistência médica. Investe-se em capacitações, tanto na rede básica, como na assistência hospitalar, a fim de deixar a medicina mais acolhedora, no sentido geral da palavra. Humanizar o que é humano. O doente, este já tão fragilizado, precisa se sentir acolhido, protegido, num ambiente muitas vezes inóspito, sem cor, em meio a dor física e porque não dizer, da alma... Na rede pública, apesar das políticas de humanização, com elaboração de portarias, etc, a coisa ainda engatinha, apesar da semente já estar plantada. Como tornar “humano” hospitais lotados, muitas vezes com pacientes internados nos corredores? Ainda temos que caminhar muito. Humanizar, acolher, dar respostas, amenizar a dor, o sofrimento. Ensinar ao  humano a ser humano não é muito fácil.  Parece ironia, mas muitas vezes usamos a expressão “eu sou humano” justamente para justificar nossos erros, nossas imperfeições...
Recentemente, tive oportunidade de experimentar das duas “humanidades”. A humanidade acolhedora, protetora, que tenta de todas as formas aliviar o sofrimento. E a humanidade desumana, imperfeita, indiferente, aquela que usamos para justificar nossos erros.
Eu estava no quinto dia de pós-operatório de uma cirurgia cardíaca, para correção de um aneurisma de aorta torácica. Depois de passar por uma verdadeira maratona, 3 dias na UTI, cheia de tubos, quase sem poder me movimentar, eu agora estava num apartamento, onde podia ficar com uma acompanhante no quarto  e também receber visitas quase sem restrições. Na UTI, as visitas se restringem a 30 minutos por dia, do tipo, só pra verem que você realmente está vivo. Entra e sai rapidinho, para dar a vez ao outro que também quer entrar. Mas não poderia ser muito diferente. UTI não é lugar para reuniões . Mesmo assim, é muito bom receber, mesmo que rapidinho, a visita de pessoas queridas. Eu recebi poucas visitas enquanto estive lá, apenas minha família e dois amigos , que moram longe, e estavam de passagem por Natal: Wilson, colega médico de Assu, que desde que soubera da minha cirurgia prometera vir e entrar para assistir, mas como foi tudo marcado em cima da hora, terminou não dando tempo... e Lula, meu amigo e colega da faculdade, que mora em Recife, e coincidentemente estava em Natal para dar aulas num curso de especialização. Quando ligou para o meu celular avisando que estava aqui, querendo combinar para comermos “aquele” camarão, foi informado por minha filha que eu já tinha feito a cirurgia e que estava internada.  Coincidência maior foi descobrir que Wilson era aluno de Lula, e quando os dois entraram juntos para me visitar, tive uma grata e feliz surpresa! Os outros amigos preferiram esperar eu ir para o apartamento para irem me visitar. Mas minha filha me dava noticias de todos que ligavam ou mandavam mensagens querendo saber como eu estava, e isso me confortava.
Na UTI os dias parecem não ter fim, e as noites... também! Uma TV em cada Box, tenta nos manter  em contato com o mundo, mas, na situação em que me encontrava, o que menos me interessava era ver Luciano Huck, ou mesmo as receitas de Ana Maria Braga. Algo do Jornal Nacional, talvez. Mesmo assim, pedi para deixarem ligada e vez por outra, prestava atenção em algo. Na verdade, minha diversão maior terminou sendo tentar descobrir o que acontecera com meus vizinhos de Box. Coisas de médico. O leito 3, um advogado de 57 anos, que passara mal em casa, e ao ser levado para o hospital, infartou durante o exame de cateterismo, fazendo uma parada cardíaca. Sorte dele estar no hospital, pois foi imediatamente feito a angioplastia, e agora ele contava a história, e dizia a todos que a partir de então, teria uma nova vida, menos estressante, que cuidaria mais de si, que comeria menos gordura, que ia aprender a dedicar um tempo a ele mesmo para lazer e atividade física, que pararia de fumar... e falava “pelos cotovelos”! (tomara que ele cumpra mesmo essas promessas, se quiser viver um pouco mais!). Já o vovozinho do leito 4 dormia o tempo todo, e descobri que fizera uma cirurgia ortopédica para correção de fratura de fêmur. Descobri também que já fora prefeito de uma cidade do interior e por coincidência, era tio de uma amiga minha. O outro, do leito 5, eu terminei não descobrindo nada. Apenas sei que dormiu e roncou a noite inteira e não me deixou dormir!
Apesar de UTI ter a fama de ser um ambiente frio, inóspito, não tenho do que me queixar dos dias que passei lá. Toda a equipe me acolheu muito bem, e a todo instante alguém me ajudava em algo. Lembro que na primeira noite, sentia muita sede, os lábios ressecados, e ainda não podia beber água. Mas um técnico de enfermagem molhava meus lábios quase a cada 5 minutos, e no final, eu já nem precisava pedir, bastava um olhar, e lá vinha ele, sorridente, com um copinho na mão, e fingia não ver quando eu, disfarçadamente, engolia um pouco da água, para molhar a garganta ressecada... E quando no dia seguinte, eu já podendo me alimentar, mas ainda cheia de tubos, sem poder sentar direito, a mão direita edemaciada, sem forças nem para pegar uma colher, colocaram uma bandeja cheia de comida na minha frente e eu fiquei ali, sem poder me mexer, só olhando para a comida... Alguém, de longe, perguntou “por que não quer comer?” Enquanto outro se aproximou e me perguntou se eu precisava de ajuda. Falei que sim, e ele, solícito, me ajudou, colocando a comida na minha boca, como quem faz com uma criança.
Bom, mas agora eu já estava em um apartamento, na companhia da família, já tinha recebido inúmeras visitas dos meus queridos amigos , e este era o quinto dia do pós-operatório. O último acesso venoso havia sido retirado (o que era um verdadeiro alívio, pois isso incomodava muito, principalmente  quando precisava levantar para ir ao banheiro, ou para aquelas breves caminhadas pelo corredor do hospital). Apesar da minha recuperação estar sendo um sucesso, eu estava literalmente sem dormir desde que fizera a cirurgia, seja pelo incômodo dos vários tubos, pela posição que não estava acostumada, pela movimentação intensa na UTI, depois pelo entra e sai do pessoal da enfermagem no apartamento para trocar soro, fazer medicação, e tudo mais que se tem num hospital. Mas eu esperava que depois da última medicação da noite, eu finalmente teria “aquela” noite especial, e dormiria pelo menos o suficiente para diminuir o cansaço. Não sei se foi a ansiedade, ou o excesso de cansaço, o certo é que as horas passavam e eu não conseguia pregar os olhos... e quanto mais eu tentava, mais desperta eu ficava. Já passava de 1:30h da madrugada e eu vi que não conseguiria dormir, então, resolvi chamar alguém. Minha prima, que estava me fazendo companhia, acendeu a luz de alerta, e logo apareceu uma mocinha, técnica de enfermagem. Falei pra ela que não estava conseguindo dormir, e pedi pra que ela providenciasse algo para que eu pudesse relaxar um pouco. “Vou falar com a enfermeira e ver se tem algo prescrito”, respondeu ela, pedindo logo que apagássemos a luz de alerta. Considerando que a medicação em questão é um psicotrópico, e que provavelmente não estava prescrito no meu prontuário, fiquei calculando o tempo que ela levaria para me dar um retorno. Deveria ir até a enfermeira, que por sua vez procuraria o médico de plantão para prescrever, e aí, deveria ir até o armário de medicação controlada, que com certeza estaria trancado, e só então retornaria com o remédio. Isso levaria pelo menos uns vinte minutos. Então fiquei quieta, esperando. O tempo passando. 1:30h, 1:40h, 1:50h, 2:00h, e nada! Nem sequer uma resposta! E eu lá, sem dormir.  Resolvemos apertar novamente a luz de alerta e dessa vez apareceu uma outra pessoa. Repeti a mesma história, que não conseguia dormir e que já tinha falado com a outra colega dela, e ela não me dera resposta. Novamente a mesma história: “vou ver se tem algo prescrito”. E saiu apressada. Pedi a minha prima que deixasse a luz acesa, só assim teríamos certeza de que ela voltaria. E voltou, pouco tempo depois, para pedir que apagássemos a luz e dizer que “não havia nada prescrito no prontuário, e que como era psicotrópico, só se o meu médico prescrevesse” (em outras palavras: “não vamos ligar para o médico de madrugada, pra ele autorizar um remédio para a senhora dormir”). Falei pra ela que conhecia muito bem a rotina dos medicamentos e que com certeza ali havia um médico de plantão justamente para resolver esses casos, então, que ela conversasse com a enfermeira responsável pelo plantão, que ela resolveria junto ao médico. Ela olhou pra mim com cara de poucos amigos e falou que “ia ver o que podia fazer”. Nisso, já era 2:30h da madrugada, e eu fiquei lá, novamente fazendo aquela contagem: falar com a enfermeira, que vai falar com o médico, que vai prescrever o remédio e em seguida, retornar com a medicação. Mais 30 minutos se passaram e nada! Nenhuma resposta, nenhum retorno. 3:00h da madrugada e eu resolvi desistir de chamar. Àquela altura, não adiantaria mais. Até a medicação fazer efeito, seria hora de começar toda aquela rotina do hospital e eu não poderia mais dormir, a não ser que o remédio fosse o que chamamos de “sossega-leão”.
Fiquei lá, olhando para o teto e esperando as horas passarem. Bem que eu queria estar na UTI, tenho certeza de que lá, teria sido prontamente atendida. Mil coisas passavam por minha cabeça. Pensei na novela que foi a história dessa minha cirurgia, nos amigos que me apoiaram, que não saíram do meu lado, e até naqueles que trataram com indiferença, como se isso fosse apenas uma banalidade e eu apenas estivesse exagerando para chamar a atenção. Pensei nas inúmeras mensagens carinhosas de apoio que tinha recebido, até dos amigos que ficaram sabendo por acaso. Pensei nas mensagens que esperei receber, de alguns que fiz questão de avisar,  e que, mesmo assim não recebi. Talvez eles estivessem ocupados demais para se preocupar comigo.
Pela fresta da janela vi que o dia amanhecia, e não tardou para que a porta se abrisse e entrassem as duas funcionarias que me atenderam de madrugada. “Viemos fazer o eletrocardiograma”, falaram, depois de me dar um bom-dia amarelo. Respondi com um bom-dia azedo e falei “se o eletro der alterado, com certeza é porque não dormi um segundo à noite”! Elas me olharam entre desconfiadas e espantadas, como se aquilo fosse novidade para elas.  “Mas a senhora não chamou mais, pensamos que houvesse dormido”... Falei: -“e adiantava eu insistir se já era mais de 3:00h, e as 4:00h vocês já começariam a entrar aqui, como estão agora? Talvez para vocês seja uma bobagem uma paciente com insônia, mas para quem se submeteu a uma cirurgia como a minha e está há 5 dias literalmente sem dormir, uma noite de sono faz toda a diferença! Quero saber se vocês comunicaram à enfermeira.” Elas responderam um sim sem muita convicção e eu perguntei novamente se a enfermeira havia falado com o médico. Elas responderam um “não”, meio parecido com o miado de um gato. Mau-humorada, falei: “só quero ver quando ela estiver aqui, no meu lugar”.
Pouco depois delas saírem, novamente veio outra funcionária, dessa vez, para verificar os sinais vitais. Rotina de hospital é assim, depois que amanhece o dia, a cada 5 minutos entra alguém no quarto, seja para exames, fazer medicação, verificar sinais vitais, trazer o kit do banho, café da manhã, limpeza do quarto, etc, etc. Então, nem pensar em dormir durante  o dia! Mas a mocinha dos sinais vitais, essa mais simpática do que as outras, começou a conversar e quando eu falei que não havia dormido, questionou porque eu não havia chamado a enfermagem. Contei toda a história e ela: “eu sei que não justifica, mas a senhora deveria ter insistido mais!”  Falei que não insisti porque, como médica, eu sabia da rotina dos medicamentos e procurei dar o tempo necessário para que providenciassem. E depois, pelo adiantado da hora, terminei não insistindo porque até a medicação fazer efeito, pra mim não teria mais serventia. Ela olhou para mim espantada e falou: “A senhora é médica?!? E por que não falou nada?” Eu falei:”Isso deveria fazer diferença? Porque aqui eu  sou paciente, e independente de ser médica, advogada, professora, ou qualquer outra profissão, devo ser tratada como ser humano”. Ela ficou meio sem jeito e falou: “É, realmente, não é para fazer diferença. Mesmo assim, peço desculpas pelo ocorrido, mesmo não tendo participado dele”.
Pouco depois que ela saiu, chegou a enfermeira responsável pelo plantão noturno. Totalmente sem graça, me pediu que contasse a minha versão, e depois que me ouviu, falou que não havia sido comunicada de nada, e que estava sinceramente envergonhada pelo ocorrido. Pediu-me mil desculpas e falou que isso jamais deveria ter acontecido, principalmente porque no hospital eles prezavam pela humanização, inclusive com sistema de educação continuada para todos os funcionários. “Nós temos uma ouvidoria aqui no Hospital, e se você quiser, pode ficar a vontade para fazer uma denuncia...” Falei que não seria necessário. Nem lembrava os nomes das funcionárias. Mas ela, pelo horário do ocorrido, deveria saber quem eram. Queria apenas que conversasse com elas e as orientasse melhor, para que isso não voltasse a ocorrer com outra pessoa.  Que elas aprendessem a valorizar as queixas do paciente. Que aprendessem a dar respostas. Mesmo assim, ela continuou se desculpando.  Falei para ela que só lamentava não poder mais dar a nota 10 que estava pensando em dar ao Hospital, depois daquele ocorrido. Infelizmente, não é fácil lidar com o ser humano. Não é fácil ensinar “o humano a ser humano”. E nós, humanos, somos o sinônimo da imperfeição. Ou não?

domingo, 30 de outubro de 2011

Que sufoco!!!

Todo mundo, quando sai da faculdade para enfrentar a vida profissional, sente aquele friozinho na barriga. É chegada a hora de assumir a responsabilidade, sem contar com a supervisão e orientação dos professores. Na medicina, essa responsabilidade é imensa, por se tratar de estar lidando com vidas. Tomar a decisão certa, na hora certa, para salvar uma vida!
Depois que concluí o curso de medicina, enquanto aguardava meu primeiro emprego, resolvi passar uns dias na minha cidade, no interior da Paraíba. Depois da agitação do último ano, recheado de plantões, além de participar da comissão de formatura, eu merecia um belo descanso.
Minha cidade fica no sertão da Paraíba, lá onde o vento faz a curva, distante da capital uns 410 km. Na época, contava com dois hospitais: uma maternidade e um hospital geral. Eu poderia muito bem ter ido trabalhar em um deles, ou mesmo nos dois, mas no momento, tudo o que eu queria era um bom período de descanso, sem me preocupar com nada.
Um dia, enquanto eu curtia aquela letargia pós prandial (para não dizer preguiça que nos atinge após uma refeição), fui surpreendida por um primo, Tarcisio, que entrou em minha casa feito um furacão. Vinha suado, nervoso, quase chorando... Queria que eu fosse com ele à maternidade, onde sua mulher estava internada desde a noite anterior, em trabalho de parto. Era sua primeira gravidez, e eles estavam ansiosos pela chegada do bebê.
- Ela está com muitas dores, desde ontem, e o bebê não nasce!
Perguntei-lhe pelo médico de plantão, mas ele falou que na maternidade estava apenas um estudante do quarto ano de medicina, pois o plantonista tivera que se ausentar para atender uma emergência na cidade vizinha, que ficava a uns 15 km dali. Isso mesmo, a típica história de cobrir um santo e deixar o outro descoberto!!
A preguiça sumiu de repente. Não pensei duas vezes e imediatamente o acompanhei até a maternidade. No caminho, a mente já fervilhava, pensando nas possibilidades do que poderia acontecer. Chegando lá, identifiquei-me como médica e pedi para falar com o responsável pelo plantão. A auxiliar de enfermagem confirmou que o plantonista tivera que se ausentar, e deixara um estudante no seu lugar. Se hoje a carência de profissionais no interior é grande, naquela época era maior ainda, e essa conduta era comum.
Pedi para ver a paciente e o seu prontuário, para me inteirar da situação. Na enfermaria de pré-parto, ela se contorcia de dor. Olhei as anotações, e vi que ela havia sido avaliada há mais de 3 horas e ao examiná-la, percebi que não havia evoluído em nada o trabalho de parto. Os batimentos cardíacos do feto já oscilavam e já havia eliminação de mecônio, sinal de sofrimento fetal. Não havia o que esperar. Ela precisava de uma cesariana, e logo, antes que o pior acontecesse ao bebê!
A decisão estava tomada, e eu comecei a suar frio! Isso tinha que acontecer justo comigo?!? Durante meus estágios, já havia realizado inúmeras cirurgias, porém, em todas, tinha do lado um preceptor, me dando segurança, e agora eu me via diante de uma situação em que a segurança estava em mim, e eu não estava nada segura!! E tinha que ser justamente com alguém da família?? O suporte que eu tinha era um estudante, que nunca realizara sequer um parto! E o anestesista? Eu precisava pensar rápido, pois o tempo era crucial naquele momento.
Lembrei que há alguns dias atrás encontrara com um amigo que também terminara medicina recentemente e estava passando férias na cidade, como eu. Consegui o telefone dele e liguei, torcendo para que ele estivesse em casa! Para meu alívio, ele mesmo atendeu o telefone, e depois que lhe expliquei a situação, ele imediatamente se prontificou em me ajudar. Porém, como eu, ele também não fazia anestesia...
Resolvemos apelar para o outro hospital, torcendo para que o plantonista também não tivesse abandonado o posto, e pudesse fazer a anestesia. Para nosso alívio, ele estava lá e era também anestesista!
Resolvemos então transferir a paciente para o outro hospital, e lá, com a equipe completa, fizemos a cesariana. O bebê nasceu cianótico, porém pouco depois começou a chorar forte, e eu respirei aliviada.
Logo em seguida, sentindo o peso da responsabilidade do que é ser médica, dava a noticia ao pai, que do lado de fora aguardava ansioso.
-É um menino...

E este é o "menino", hoje. Rodrigo, sinto-me um pouquinho sua "mãe"...