Atualmente, fala-se muito em humanização na assistência médica. Investe-se em capacitações, tanto na rede básica, como na assistência hospitalar, a fim de deixar a medicina mais acolhedora, no sentido geral da palavra. Humanizar o que é humano. O doente, este já tão fragilizado, precisa se sentir acolhido, protegido, num ambiente muitas vezes inóspito, sem cor, em meio a dor física e porque não dizer, da alma... Na rede pública, apesar das políticas de humanização, com elaboração de portarias, etc, a coisa ainda engatinha, apesar da semente já estar plantada. Como tornar “humano” hospitais lotados, muitas vezes com pacientes internados nos corredores? Ainda temos que caminhar muito. Humanizar, acolher, dar respostas, amenizar a dor, o sofrimento. Ensinar ao humano a ser humano não é muito fácil. Parece ironia, mas muitas vezes usamos a expressão “eu sou humano” justamente para justificar nossos erros, nossas imperfeições...
Recentemente, tive oportunidade de experimentar das duas “humanidades”. A humanidade acolhedora, protetora, que tenta de todas as formas aliviar o sofrimento. E a humanidade desumana, imperfeita, indiferente, aquela que usamos para justificar nossos erros.
Eu estava no quinto dia de pós-operatório de uma cirurgia cardíaca, para correção de um aneurisma de aorta torácica. Depois de passar por uma verdadeira maratona, 3 dias na UTI, cheia de tubos, quase sem poder me movimentar, eu agora estava num apartamento, onde podia ficar com uma acompanhante no quarto e também receber visitas quase sem restrições. Na UTI, as visitas se restringem a 30 minutos por dia, do tipo, só pra verem que você realmente está vivo. Entra e sai rapidinho, para dar a vez ao outro que também quer entrar. Mas não poderia ser muito diferente. UTI não é lugar para reuniões . Mesmo assim, é muito bom receber, mesmo que rapidinho, a visita de pessoas queridas. Eu recebi poucas visitas enquanto estive lá, apenas minha família e dois amigos , que moram longe, e estavam de passagem por Natal: Wilson, colega médico de Assu, que desde que soubera da minha cirurgia prometera vir e entrar para assistir, mas como foi tudo marcado em cima da hora, terminou não dando tempo... e Lula, meu amigo e colega da faculdade, que mora em Recife, e coincidentemente estava em Natal para dar aulas num curso de especialização. Quando ligou para o meu celular avisando que estava aqui, querendo combinar para comermos “aquele” camarão, foi informado por minha filha que eu já tinha feito a cirurgia e que estava internada. Coincidência maior foi descobrir que Wilson era aluno de Lula, e quando os dois entraram juntos para me visitar, tive uma grata e feliz surpresa! Os outros amigos preferiram esperar eu ir para o apartamento para irem me visitar. Mas minha filha me dava noticias de todos que ligavam ou mandavam mensagens querendo saber como eu estava, e isso me confortava.
Na UTI os dias parecem não ter fim, e as noites... também! Uma TV em cada Box, tenta nos manter em contato com o mundo, mas, na situação em que me encontrava, o que menos me interessava era ver Luciano Huck, ou mesmo as receitas de Ana Maria Braga. Algo do Jornal Nacional, talvez. Mesmo assim, pedi para deixarem ligada e vez por outra, prestava atenção em algo. Na verdade, minha diversão maior terminou sendo tentar descobrir o que acontecera com meus vizinhos de Box. Coisas de médico. O leito 3, um advogado de 57 anos, que passara mal em casa, e ao ser levado para o hospital, infartou durante o exame de cateterismo, fazendo uma parada cardíaca. Sorte dele estar no hospital, pois foi imediatamente feito a angioplastia, e agora ele contava a história, e dizia a todos que a partir de então, teria uma nova vida, menos estressante, que cuidaria mais de si, que comeria menos gordura, que ia aprender a dedicar um tempo a ele mesmo para lazer e atividade física, que pararia de fumar... e falava “pelos cotovelos”! (tomara que ele cumpra mesmo essas promessas, se quiser viver um pouco mais!). Já o vovozinho do leito 4 dormia o tempo todo, e descobri que fizera uma cirurgia ortopédica para correção de fratura de fêmur. Descobri também que já fora prefeito de uma cidade do interior e por coincidência, era tio de uma amiga minha. O outro, do leito 5, eu terminei não descobrindo nada. Apenas sei que dormiu e roncou a noite inteira e não me deixou dormir!
Apesar de UTI ter a fama de ser um ambiente frio, inóspito, não tenho do que me queixar dos dias que passei lá. Toda a equipe me acolheu muito bem, e a todo instante alguém me ajudava em algo. Lembro que na primeira noite, sentia muita sede, os lábios ressecados, e ainda não podia beber água. Mas um técnico de enfermagem molhava meus lábios quase a cada 5 minutos, e no final, eu já nem precisava pedir, bastava um olhar, e lá vinha ele, sorridente, com um copinho na mão, e fingia não ver quando eu, disfarçadamente, engolia um pouco da água, para molhar a garganta ressecada... E quando no dia seguinte, eu já podendo me alimentar, mas ainda cheia de tubos, sem poder sentar direito, a mão direita edemaciada, sem forças nem para pegar uma colher, colocaram uma bandeja cheia de comida na minha frente e eu fiquei ali, sem poder me mexer, só olhando para a comida... Alguém, de longe, perguntou “por que não quer comer?” Enquanto outro se aproximou e me perguntou se eu precisava de ajuda. Falei que sim, e ele, solícito, me ajudou, colocando a comida na minha boca, como quem faz com uma criança.
Bom, mas agora eu já estava em um apartamento, na companhia da família, já tinha recebido inúmeras visitas dos meus queridos amigos , e este era o quinto dia do pós-operatório. O último acesso venoso havia sido retirado (o que era um verdadeiro alívio, pois isso incomodava muito, principalmente quando precisava levantar para ir ao banheiro, ou para aquelas breves caminhadas pelo corredor do hospital). Apesar da minha recuperação estar sendo um sucesso, eu estava literalmente sem dormir desde que fizera a cirurgia, seja pelo incômodo dos vários tubos, pela posição que não estava acostumada, pela movimentação intensa na UTI, depois pelo entra e sai do pessoal da enfermagem no apartamento para trocar soro, fazer medicação, e tudo mais que se tem num hospital. Mas eu esperava que depois da última medicação da noite, eu finalmente teria “aquela” noite especial, e dormiria pelo menos o suficiente para diminuir o cansaço. Não sei se foi a ansiedade, ou o excesso de cansaço, o certo é que as horas passavam e eu não conseguia pregar os olhos... e quanto mais eu tentava, mais desperta eu ficava. Já passava de 1:30h da madrugada e eu vi que não conseguiria dormir, então, resolvi chamar alguém. Minha prima, que estava me fazendo companhia, acendeu a luz de alerta, e logo apareceu uma mocinha, técnica de enfermagem. Falei pra ela que não estava conseguindo dormir, e pedi pra que ela providenciasse algo para que eu pudesse relaxar um pouco. “Vou falar com a enfermeira e ver se tem algo prescrito”, respondeu ela, pedindo logo que apagássemos a luz de alerta. Considerando que a medicação em questão é um psicotrópico, e que provavelmente não estava prescrito no meu prontuário, fiquei calculando o tempo que ela levaria para me dar um retorno. Deveria ir até a enfermeira, que por sua vez procuraria o médico de plantão para prescrever, e aí, deveria ir até o armário de medicação controlada, que com certeza estaria trancado, e só então retornaria com o remédio. Isso levaria pelo menos uns vinte minutos. Então fiquei quieta, esperando. O tempo passando. 1:30h, 1:40h, 1:50h, 2:00h, e nada! Nem sequer uma resposta! E eu lá, sem dormir. Resolvemos apertar novamente a luz de alerta e dessa vez apareceu uma outra pessoa. Repeti a mesma história, que não conseguia dormir e que já tinha falado com a outra colega dela, e ela não me dera resposta. Novamente a mesma história: “vou ver se tem algo prescrito”. E saiu apressada. Pedi a minha prima que deixasse a luz acesa, só assim teríamos certeza de que ela voltaria. E voltou, pouco tempo depois, para pedir que apagássemos a luz e dizer que “não havia nada prescrito no prontuário, e que como era psicotrópico, só se o meu médico prescrevesse” (em outras palavras: “não vamos ligar para o médico de madrugada, pra ele autorizar um remédio para a senhora dormir”). Falei pra ela que conhecia muito bem a rotina dos medicamentos e que com certeza ali havia um médico de plantão justamente para resolver esses casos, então, que ela conversasse com a enfermeira responsável pelo plantão, que ela resolveria junto ao médico. Ela olhou pra mim com cara de poucos amigos e falou que “ia ver o que podia fazer”. Nisso, já era 2:30h da madrugada, e eu fiquei lá, novamente fazendo aquela contagem: falar com a enfermeira, que vai falar com o médico, que vai prescrever o remédio e em seguida, retornar com a medicação. Mais 30 minutos se passaram e nada! Nenhuma resposta, nenhum retorno. 3:00h da madrugada e eu resolvi desistir de chamar. Àquela altura, não adiantaria mais. Até a medicação fazer efeito, seria hora de começar toda aquela rotina do hospital e eu não poderia mais dormir, a não ser que o remédio fosse o que chamamos de “sossega-leão”.
Fiquei lá, olhando para o teto e esperando as horas passarem. Bem que eu queria estar na UTI, tenho certeza de que lá, teria sido prontamente atendida. Mil coisas passavam por minha cabeça. Pensei na novela que foi a história dessa minha cirurgia, nos amigos que me apoiaram, que não saíram do meu lado, e até naqueles que trataram com indiferença, como se isso fosse apenas uma banalidade e eu apenas estivesse exagerando para chamar a atenção. Pensei nas inúmeras mensagens carinhosas de apoio que tinha recebido, até dos amigos que ficaram sabendo por acaso. Pensei nas mensagens que esperei receber, de alguns que fiz questão de avisar, e que, mesmo assim não recebi. Talvez eles estivessem ocupados demais para se preocupar comigo.
Pela fresta da janela vi que o dia amanhecia, e não tardou para que a porta se abrisse e entrassem as duas funcionarias que me atenderam de madrugada. “Viemos fazer o eletrocardiograma”, falaram, depois de me dar um bom-dia amarelo. Respondi com um bom-dia azedo e falei “se o eletro der alterado, com certeza é porque não dormi um segundo à noite”! Elas me olharam entre desconfiadas e espantadas, como se aquilo fosse novidade para elas. “Mas a senhora não chamou mais, pensamos que houvesse dormido”... Falei: -“e adiantava eu insistir se já era mais de 3:00h, e as 4:00h vocês já começariam a entrar aqui, como estão agora? Talvez para vocês seja uma bobagem uma paciente com insônia, mas para quem se submeteu a uma cirurgia como a minha e está há 5 dias literalmente sem dormir, uma noite de sono faz toda a diferença! Quero saber se vocês comunicaram à enfermeira.” Elas responderam um sim sem muita convicção e eu perguntei novamente se a enfermeira havia falado com o médico. Elas responderam um “não”, meio parecido com o miado de um gato. Mau-humorada, falei: “só quero ver quando ela estiver aqui, no meu lugar”.
Pouco depois delas saírem, novamente veio outra funcionária, dessa vez, para verificar os sinais vitais. Rotina de hospital é assim, depois que amanhece o dia, a cada 5 minutos entra alguém no quarto, seja para exames, fazer medicação, verificar sinais vitais, trazer o kit do banho, café da manhã, limpeza do quarto, etc, etc. Então, nem pensar em dormir durante o dia! Mas a mocinha dos sinais vitais, essa mais simpática do que as outras, começou a conversar e quando eu falei que não havia dormido, questionou porque eu não havia chamado a enfermagem. Contei toda a história e ela: “eu sei que não justifica, mas a senhora deveria ter insistido mais!” Falei que não insisti porque, como médica, eu sabia da rotina dos medicamentos e procurei dar o tempo necessário para que providenciassem. E depois, pelo adiantado da hora, terminei não insistindo porque até a medicação fazer efeito, pra mim não teria mais serventia. Ela olhou para mim espantada e falou: “A senhora é médica?!? E por que não falou nada?” Eu falei:”Isso deveria fazer diferença? Porque aqui eu sou paciente, e independente de ser médica, advogada, professora, ou qualquer outra profissão, devo ser tratada como ser humano”. Ela ficou meio sem jeito e falou: “É, realmente, não é para fazer diferença. Mesmo assim, peço desculpas pelo ocorrido, mesmo não tendo participado dele”.
Pouco depois que ela saiu, chegou a enfermeira responsável pelo plantão noturno. Totalmente sem graça, me pediu que contasse a minha versão, e depois que me ouviu, falou que não havia sido comunicada de nada, e que estava sinceramente envergonhada pelo ocorrido. Pediu-me mil desculpas e falou que isso jamais deveria ter acontecido, principalmente porque no hospital eles prezavam pela humanização, inclusive com sistema de educação continuada para todos os funcionários. “Nós temos uma ouvidoria aqui no Hospital, e se você quiser, pode ficar a vontade para fazer uma denuncia...” Falei que não seria necessário. Nem lembrava os nomes das funcionárias. Mas ela, pelo horário do ocorrido, deveria saber quem eram. Queria apenas que conversasse com elas e as orientasse melhor, para que isso não voltasse a ocorrer com outra pessoa. Que elas aprendessem a valorizar as queixas do paciente. Que aprendessem a dar respostas. Mesmo assim, ela continuou se desculpando. Falei para ela que só lamentava não poder mais dar a nota 10 que estava pensando em dar ao Hospital, depois daquele ocorrido. Infelizmente, não é fácil lidar com o ser humano. Não é fácil ensinar “o humano a ser humano”. E nós, humanos, somos o sinônimo da imperfeição. Ou não?