segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Profissão: Médica.


Esses dias estive refletindo sobre a minha profissão. Desde criança, sempre que me faziam aquela clássica pergunta “o que você quer ser quando crescer?”, que não me vinha outra resposta a não ser: “vou ser médica”.  Na época, eu nem raciocinava direito em o que significava ser médica. Só sei que achava bonito aquela roupa branca (que hoje nem gosto de usar) e o respeito que ela impunha. Achava bonito quando via aqueles poucos doutores da cidade, com os consultórios lotados na sala de espera, tentando aliviar a dor e o sofrimento das pessoas. E quando as pessoas não podiam ir até o consultório, eles iam até as suas casas, e com poucos recursos disponíveis, davam o melhor de si para tentar salvar vidas.  O médico que cuidava das crianças era o mesmo que cuidava da mãe, do pai, do avô e da avó.
Eu nem raciocinava sobre o que significava tudo isso. O quanto de sacrifícios  essa profissão iria exigir de mim, e a responsabilidade que pesa sobre nós médicos.  Fui crescendo com esse pensamento, e nunca me vi em dúvidas sobre que profissão escolher. Talvez, se na época eu tivesse tido acesso a algum teste vocacional,  ficasse em dúvida entre algo que envolvesse fotografia, tipo Jornalismo Fotográfico,  já que tenho paixão por fotografias. Ou quem sabe, Letras, pois sempre fui boa aluna de Português e sempre gostei de escrever, tirava boas notas em redação. Mas não sei se seria uma boa professora.  Portanto, olho pra trás e não me vejo em outra profissão.
O tempo foi passando e eu continuei perseguindo meu sonho. Os sacrifícios começaram desde cedo, mesmo antes de me formar. Todo mundo sabe que Medicina sempre foi um dos cursos mais concorridos no vestibular. Por isso, quem faz essa escolha, tem que ter uma dedicação redobrada, para poder ousar concorrer. Noites de sono perdidas (ou ganhas) sobre os livros, festas renunciadas, fins de semana enfurnada dentro de casa... E no final, a alegria de passar no vestibular!!  E aí, vem a faculdade. Mais sacrifícios. Horário integral de estudos, quem faz medicina raramente dispõe de tempo para se dedicar a outras atividades. Nas horas vagas, estágios e mais estágios, acompanhando os professores em plantões ou cirurgias, tudo para melhorar nossa qualificação. E os livros? Caríssimos, sem contar que na minha época ainda não existia internet, com essa imensa biblioteca virtual. Tudo o que dispúnhamos era a biblioteca da Universidade, muitos livros desatualizados e grande parte deles em espanhol. Então, mais sacrifício para comprar livros!!
Durante a faculdade, fui vendo aquela imagem que eu tinha do médico do interior sair um pouco do foco. Não éramos treinados para ver o doente como uma pessoa, mas sim, pedaços dele. O estômago doente, o coração, o joelho. Éramos incentivados, desde cedo, a pensar logo numa especialidade a seguir: quem vai fazer ginecologia? Quem vai ser cardiologista? Ou ortopedista? Quem quer ser pediatra? Cada um pensava na especialidade a seguir e procurava logo um professor da área escolhida para acompanhar. Ninguém era incentivado a ser generalista ou a ir trabalhar no interior. Saúde Pública? O que é isto?? Apenas uma passagem rápida por Epidemiologia, e olhe lá! E eu, mesmo assim, sempre pensei em iniciar minha vida profissional no interior, inspirada naqueles médicos que eu lembrava da minha infância. Portanto, durante toda a minha vida de estudante, procurei acompanhar as mais variadas áreas. Dei plantões em clinica geral, no Pronto – Socorro, obstetrícia,  participava de cirurgias... e pediatria! Ah, a pediatria... essa era o meu trauma! Aquelas pequenas criaturinhas me causavam medo, pela fragilidade, por não saberem se expressar com palavras. Mas eu queria trabalhar no interior, portanto, teria que enfrentar esse medo, pois fatalmente, iria me deparar com situações em que teria que atender crianças. E resolvi então passar os 6 últimos meses do meu curso no Hospital de Pediatria, onde aprendi, no mínimo a respeitar aqueles pequeninos! Confesso que isso me ajudou bastante.
Finalmente, a formatura! Felicidade misturada com o peso da responsabilidade. Afinal, a partir de então, não teremos mais um professor para nos respaldar e nos orientar nas nossas decisões, a todo momento. A vida está em nossas mãos, e essa profissão não admite erros. Não hesitei quando  consegui uma vaga para trabalhar no interior do Pará, na Fundação SESP, hoje Fundação Nacional de Saúde. Muitos me chamaram de louca, mas lá fui eu, com  a cara e a coragem, e com a mala recheada de livros, como se eles fossem me dar a segurança que os professores me davam nos estágios. Logo descobri que em medicina, nem sempre os casos são como descrevem os livros. Que não teria a minha disposição todo aquele suporte laboratorial e que muitas vezes teria que usar minha intuição para direcionar minhas condutas. A malária que eu via lá, não era aquela descrita pelos livros. A malária que EU tive não estava também descrita nos livros!! Acho que os cinco anos que passei por lá foram mais valiosos do que qualquer residência médica. Durante esse tempo, tive oportunidade de viver experiências incríveis. Muitas vezes, me vi em situações em que minha vontade era dizer: “chame o médico”!! Mas a médica era eu... muitas vezes, a única,  num raio de centenas de quilômetros. E posso dizer que salvei muitas vidas. Outras, não consegui salvar. Não somos Deus. E tive que fazer o que é mais doloroso para nós, médicos: assinar atestado de óbito.
Depois, ao voltar para o Nordeste, ainda tive oportunidade de viver muitas experiências em cidades do interior. Posso dizer que dei minha contribuição, e que se todo mundo fizesse o mesmo, ao sair da faculdade, talvez a população não sofresse tanto com a má distribuição de médicos. E que se os gestores também dessem a sua contribuição, pagando salários justos e dando condições dignas de trabalho, talvez os médicos se interessassem mais em trabalhar no interior.
E durante essa minha trajetória, vi surgir o SUS. Lindo, no papel, engatinhando, a princípio, mas que vem se fortalecendo ao longo desses 20 anos. E vi surgir a Estratégia Saúde da Família. E digo, com convicção, que foi amor à primeira vista! Trabalhar em equipe, criar vínculos com as famílias, entrar nas casas das pessoas, conhecer os seus problemas, faz toda a diferença! Cuidar da gestante, do bebê, da mãe, do pai, do avô e da avó... isso me lembra um pouco daquele médico do interior, que eu via na minha infância, e que, de certa forma, me inspirou na escolha da minha profissão.

2 comentários:

  1. Muito inspirador como sempre! Adorei.
    Beijo

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  2. Eis aí uma médica competente e disposta a dar a sua contribuição quando se trata de trabalhar em equipe, sempre nos passando uma segurança em tudo que faz.
    Beijão amiga

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