domingo, 30 de outubro de 2011

Que sufoco!!!

Todo mundo, quando sai da faculdade para enfrentar a vida profissional, sente aquele friozinho na barriga. É chegada a hora de assumir a responsabilidade, sem contar com a supervisão e orientação dos professores. Na medicina, essa responsabilidade é imensa, por se tratar de estar lidando com vidas. Tomar a decisão certa, na hora certa, para salvar uma vida!
Depois que concluí o curso de medicina, enquanto aguardava meu primeiro emprego, resolvi passar uns dias na minha cidade, no interior da Paraíba. Depois da agitação do último ano, recheado de plantões, além de participar da comissão de formatura, eu merecia um belo descanso.
Minha cidade fica no sertão da Paraíba, lá onde o vento faz a curva, distante da capital uns 410 km. Na época, contava com dois hospitais: uma maternidade e um hospital geral. Eu poderia muito bem ter ido trabalhar em um deles, ou mesmo nos dois, mas no momento, tudo o que eu queria era um bom período de descanso, sem me preocupar com nada.
Um dia, enquanto eu curtia aquela letargia pós prandial (para não dizer preguiça que nos atinge após uma refeição), fui surpreendida por um primo, Tarcisio, que entrou em minha casa feito um furacão. Vinha suado, nervoso, quase chorando... Queria que eu fosse com ele à maternidade, onde sua mulher estava internada desde a noite anterior, em trabalho de parto. Era sua primeira gravidez, e eles estavam ansiosos pela chegada do bebê.
- Ela está com muitas dores, desde ontem, e o bebê não nasce!
Perguntei-lhe pelo médico de plantão, mas ele falou que na maternidade estava apenas um estudante do quarto ano de medicina, pois o plantonista tivera que se ausentar para atender uma emergência na cidade vizinha, que ficava a uns 15 km dali. Isso mesmo, a típica história de cobrir um santo e deixar o outro descoberto!!
A preguiça sumiu de repente. Não pensei duas vezes e imediatamente o acompanhei até a maternidade. No caminho, a mente já fervilhava, pensando nas possibilidades do que poderia acontecer. Chegando lá, identifiquei-me como médica e pedi para falar com o responsável pelo plantão. A auxiliar de enfermagem confirmou que o plantonista tivera que se ausentar, e deixara um estudante no seu lugar. Se hoje a carência de profissionais no interior é grande, naquela época era maior ainda, e essa conduta era comum.
Pedi para ver a paciente e o seu prontuário, para me inteirar da situação. Na enfermaria de pré-parto, ela se contorcia de dor. Olhei as anotações, e vi que ela havia sido avaliada há mais de 3 horas e ao examiná-la, percebi que não havia evoluído em nada o trabalho de parto. Os batimentos cardíacos do feto já oscilavam e já havia eliminação de mecônio, sinal de sofrimento fetal. Não havia o que esperar. Ela precisava de uma cesariana, e logo, antes que o pior acontecesse ao bebê!
A decisão estava tomada, e eu comecei a suar frio! Isso tinha que acontecer justo comigo?!? Durante meus estágios, já havia realizado inúmeras cirurgias, porém, em todas, tinha do lado um preceptor, me dando segurança, e agora eu me via diante de uma situação em que a segurança estava em mim, e eu não estava nada segura!! E tinha que ser justamente com alguém da família?? O suporte que eu tinha era um estudante, que nunca realizara sequer um parto! E o anestesista? Eu precisava pensar rápido, pois o tempo era crucial naquele momento.
Lembrei que há alguns dias atrás encontrara com um amigo que também terminara medicina recentemente e estava passando férias na cidade, como eu. Consegui o telefone dele e liguei, torcendo para que ele estivesse em casa! Para meu alívio, ele mesmo atendeu o telefone, e depois que lhe expliquei a situação, ele imediatamente se prontificou em me ajudar. Porém, como eu, ele também não fazia anestesia...
Resolvemos apelar para o outro hospital, torcendo para que o plantonista também não tivesse abandonado o posto, e pudesse fazer a anestesia. Para nosso alívio, ele estava lá e era também anestesista!
Resolvemos então transferir a paciente para o outro hospital, e lá, com a equipe completa, fizemos a cesariana. O bebê nasceu cianótico, porém pouco depois começou a chorar forte, e eu respirei aliviada.
Logo em seguida, sentindo o peso da responsabilidade do que é ser médica, dava a noticia ao pai, que do lado de fora aguardava ansioso.
-É um menino...

E este é o "menino", hoje. Rodrigo, sinto-me um pouquinho sua "mãe"...


segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Profissão: Médica.


Esses dias estive refletindo sobre a minha profissão. Desde criança, sempre que me faziam aquela clássica pergunta “o que você quer ser quando crescer?”, que não me vinha outra resposta a não ser: “vou ser médica”.  Na época, eu nem raciocinava direito em o que significava ser médica. Só sei que achava bonito aquela roupa branca (que hoje nem gosto de usar) e o respeito que ela impunha. Achava bonito quando via aqueles poucos doutores da cidade, com os consultórios lotados na sala de espera, tentando aliviar a dor e o sofrimento das pessoas. E quando as pessoas não podiam ir até o consultório, eles iam até as suas casas, e com poucos recursos disponíveis, davam o melhor de si para tentar salvar vidas.  O médico que cuidava das crianças era o mesmo que cuidava da mãe, do pai, do avô e da avó.
Eu nem raciocinava sobre o que significava tudo isso. O quanto de sacrifícios  essa profissão iria exigir de mim, e a responsabilidade que pesa sobre nós médicos.  Fui crescendo com esse pensamento, e nunca me vi em dúvidas sobre que profissão escolher. Talvez, se na época eu tivesse tido acesso a algum teste vocacional,  ficasse em dúvida entre algo que envolvesse fotografia, tipo Jornalismo Fotográfico,  já que tenho paixão por fotografias. Ou quem sabe, Letras, pois sempre fui boa aluna de Português e sempre gostei de escrever, tirava boas notas em redação. Mas não sei se seria uma boa professora.  Portanto, olho pra trás e não me vejo em outra profissão.
O tempo foi passando e eu continuei perseguindo meu sonho. Os sacrifícios começaram desde cedo, mesmo antes de me formar. Todo mundo sabe que Medicina sempre foi um dos cursos mais concorridos no vestibular. Por isso, quem faz essa escolha, tem que ter uma dedicação redobrada, para poder ousar concorrer. Noites de sono perdidas (ou ganhas) sobre os livros, festas renunciadas, fins de semana enfurnada dentro de casa... E no final, a alegria de passar no vestibular!!  E aí, vem a faculdade. Mais sacrifícios. Horário integral de estudos, quem faz medicina raramente dispõe de tempo para se dedicar a outras atividades. Nas horas vagas, estágios e mais estágios, acompanhando os professores em plantões ou cirurgias, tudo para melhorar nossa qualificação. E os livros? Caríssimos, sem contar que na minha época ainda não existia internet, com essa imensa biblioteca virtual. Tudo o que dispúnhamos era a biblioteca da Universidade, muitos livros desatualizados e grande parte deles em espanhol. Então, mais sacrifício para comprar livros!!
Durante a faculdade, fui vendo aquela imagem que eu tinha do médico do interior sair um pouco do foco. Não éramos treinados para ver o doente como uma pessoa, mas sim, pedaços dele. O estômago doente, o coração, o joelho. Éramos incentivados, desde cedo, a pensar logo numa especialidade a seguir: quem vai fazer ginecologia? Quem vai ser cardiologista? Ou ortopedista? Quem quer ser pediatra? Cada um pensava na especialidade a seguir e procurava logo um professor da área escolhida para acompanhar. Ninguém era incentivado a ser generalista ou a ir trabalhar no interior. Saúde Pública? O que é isto?? Apenas uma passagem rápida por Epidemiologia, e olhe lá! E eu, mesmo assim, sempre pensei em iniciar minha vida profissional no interior, inspirada naqueles médicos que eu lembrava da minha infância. Portanto, durante toda a minha vida de estudante, procurei acompanhar as mais variadas áreas. Dei plantões em clinica geral, no Pronto – Socorro, obstetrícia,  participava de cirurgias... e pediatria! Ah, a pediatria... essa era o meu trauma! Aquelas pequenas criaturinhas me causavam medo, pela fragilidade, por não saberem se expressar com palavras. Mas eu queria trabalhar no interior, portanto, teria que enfrentar esse medo, pois fatalmente, iria me deparar com situações em que teria que atender crianças. E resolvi então passar os 6 últimos meses do meu curso no Hospital de Pediatria, onde aprendi, no mínimo a respeitar aqueles pequeninos! Confesso que isso me ajudou bastante.
Finalmente, a formatura! Felicidade misturada com o peso da responsabilidade. Afinal, a partir de então, não teremos mais um professor para nos respaldar e nos orientar nas nossas decisões, a todo momento. A vida está em nossas mãos, e essa profissão não admite erros. Não hesitei quando  consegui uma vaga para trabalhar no interior do Pará, na Fundação SESP, hoje Fundação Nacional de Saúde. Muitos me chamaram de louca, mas lá fui eu, com  a cara e a coragem, e com a mala recheada de livros, como se eles fossem me dar a segurança que os professores me davam nos estágios. Logo descobri que em medicina, nem sempre os casos são como descrevem os livros. Que não teria a minha disposição todo aquele suporte laboratorial e que muitas vezes teria que usar minha intuição para direcionar minhas condutas. A malária que eu via lá, não era aquela descrita pelos livros. A malária que EU tive não estava também descrita nos livros!! Acho que os cinco anos que passei por lá foram mais valiosos do que qualquer residência médica. Durante esse tempo, tive oportunidade de viver experiências incríveis. Muitas vezes, me vi em situações em que minha vontade era dizer: “chame o médico”!! Mas a médica era eu... muitas vezes, a única,  num raio de centenas de quilômetros. E posso dizer que salvei muitas vidas. Outras, não consegui salvar. Não somos Deus. E tive que fazer o que é mais doloroso para nós, médicos: assinar atestado de óbito.
Depois, ao voltar para o Nordeste, ainda tive oportunidade de viver muitas experiências em cidades do interior. Posso dizer que dei minha contribuição, e que se todo mundo fizesse o mesmo, ao sair da faculdade, talvez a população não sofresse tanto com a má distribuição de médicos. E que se os gestores também dessem a sua contribuição, pagando salários justos e dando condições dignas de trabalho, talvez os médicos se interessassem mais em trabalhar no interior.
E durante essa minha trajetória, vi surgir o SUS. Lindo, no papel, engatinhando, a princípio, mas que vem se fortalecendo ao longo desses 20 anos. E vi surgir a Estratégia Saúde da Família. E digo, com convicção, que foi amor à primeira vista! Trabalhar em equipe, criar vínculos com as famílias, entrar nas casas das pessoas, conhecer os seus problemas, faz toda a diferença! Cuidar da gestante, do bebê, da mãe, do pai, do avô e da avó... isso me lembra um pouco daquele médico do interior, que eu via na minha infância, e que, de certa forma, me inspirou na escolha da minha profissão.

domingo, 9 de outubro de 2011

Praticando o desapego - Parte III (Final)

(Antes de ler, aconselho a leitura das partes I e II de "Praticando o Desapego")


Não sei se com as outras pessoas acontece o mesmo, mas sempre que eu me desfaço de algo que estava guardado, sem uso, achando que não vou mais precisar daquilo, poucos dias depois, acontece algo e eu me lembro do que me desfiz e penso: “não deveria ter jogado fora”...
Com o vestido foi mais ou menos assim. Só que eu não havia ainda jogado fora. Apenas tinha tirado do armário, colocado em um cantinho longe dos meus olhos, decidida a não ter mais expectativas com relação a esperar outra ocasião de usá-lo. E logo depois de fazer isso, me aparece uma nova oportunidade!
Fiquei eufórica, feliz por não ter me desfeito ainda daquela preciosidade. Finalmente eu teria uma nova chance! E certamente, como da outra vez, eu deveria me sentir muito bem com ele. Nem pensei em procurar outra roupa. Até tenho outras opções, mas o que eu queria mesmo era usar aquele vestido. Corri para o local onde o  havia guardado, lá no fundo do baú, e depois de alguns minutos de procura, encontrei o que queria. Na hora, tão ansiosa que estava por usá-lo novamente, nem valorizei o fato de não estar no mesmo lugar onde eu havia guardado. Não me importei muito com isso, achando que talvez, eu mesma tivesse confundido e guardado em um lugar diferente do que eu lembrava.
Com cuidado, retirei o vestido do saco onde havia guardado. Acariciei o tecido macio, sentindo a felicidade de poder novamente ter a oportunidade de vesti-lo. Resolvi experimentá-lo novamente, afinal, depois de tanto tempo, talvez fosse preciso fazer alguns ajustes...
Vesti o vestido, e num impulso, corri para frente do espelho. Observei novamente minha imagem refletida, e vi que ele realmente ficava bem em mim. Como eu me sentia bem com ele!! Mas, após alguns minutos de observação  algo começou a me incomodar. Não sabia bem o que, mas algo não estava certo. Comecei a sentir algo estranho, e um cheiro desconhecido começou a penetrar nas minhas narinas. Eu não reconhecia esse cheiro. Não era meu. Procurei ao meu redor, tentando encontrar algo que justificasse o que estava sentindo, mas não identifiquei nada diferente. Parei um pouco e novamente analisei minha imagem no espelho. O vestido, apesar de a princípio parecer igual, tinha algo de diferente. As cores não pareciam as mesmas. Parecia um pouco desbotado. Poderia ter sido pelo tempo que ficou guardado.  Mas não era só isso. Aquele cheiro continuava incomodando minhas narinas. E percebi que o cheiro vinha dele, do vestido. Sim, era um cheiro diferente, não era meu, era de outra pessoa!!! Então entendi. Alguém pegara meu vestido e usara, sem a minha permissão. E deixara sua marca nele. Uma marca tão forte, que agora me incomodava muito. E, observando melhor, identifiquei outras marcas, que provavelmente não eram da mesma pessoa. Ou seja, enquanto eu esperava a oportunidade certa para usá-lo, varias pessoas o haviam usado, provavelmente sem o mesmo zelo que eu teria com ele. E deixaram marcas que dificilmente eu iria conseguir apagar. Tiraram dele toda aquela magia, aquele encantamento. Já não parecia ser o mesmo vestido. E não existe nada mais constrangedor do que você usar uma roupa, achando que é um modelo único e de repente descobrir que ela foi usada recentemente por outra pessoa. Ou chegar em uma festa e descobrir que alguém copiou o seu modelito “exclusivo”. Acho que muita gente já passou por esse constrangimento.
Nesse caso, pensei, melhor mesmo me desfazer dele. Entregá-lo de vez para o bazar, ou mesmo para uma loja de aluguel de roupas. De lembrança, vou guardar a foto que tirei quando o usei pela primeira vez. E um dia, quem sabe, ao passar por uma vitrine, algo me chame atenção e eu compre um novo vestido. Quem sabe...