terça-feira, 31 de maio de 2011

Uma história de amor...

Às vezes, quando menos esperamos, Deus coloca anjos em nosso caminho, com a finalidade de nos proteger, nos guiar, fazer com que não desistamos dos nossos sonhos. Eu já encontrei muitos desses anjos, durante essa minha jornada na vida. Mas, dois deles, foram no mínimo, especiais. O nome desses anjos: Cândida e Oriévilo.
Quando cheguei a Itaituba, naquele fim de tarde, depois de enfrentar uma verdadeira aventura no aeroporto de Santarém, eu não tinha uma noção real do que me esperava. Já sabia que a cidade não era muito atrativa, que tinha muita violência, que o custo de vida era alto, devido a alta exploração do ouro na região, mas eu estava indo trabalhar, e no momento, era o que me interessava. A cidade não tinha sequer um hotel decente, onde eu pudesse me hospedar, mas na Diretoria Regional, em Belém, fui informada que a Fundação SESP dispunha de residências para os técnicos, e que eu iria dividir uma casa com a enfermeira. Mas não foi bem isso que aconteceu.
As casas existiam sim, e eram cinco, mas estavam todas ocupadas. Duas por médicos, uma pelo dentista, outra pelo secretário da Unidade e a última pela enfermeira. Mas ela não morava sozinha, tinha uma família enorme, e nem sequer sabia que eu iria “morar com ela”.
Chegando à cidade, fui direto procurar o Diretor, achando que já estava tudo certo  para morar com a enfermeira, e que iria apenas saber onde era a casa. As casas todas ficavam numa vila, bem próxima do Hospital.  Fui recebida pela mulher do Diretor, que me olhou atravessado, analisando-me  dos pés à cabeça, e foi logo dizendo que o marido estava no Hospital, e que ela não poderia me hospedar porque estava sem empregada! Perguntei sobre a enfermeira, e fui informada que ela também não poderia me receber porque a casa já estava cheia. Fiquei parada na porta. Até então, ela  não havia sequer me convidado para entrar. O motorista do taxi continuava parado atrás de mim, com as malas na mão, sem saber onde colocá-las, e eu comecei a me angustiar, pois sabia que encontrar um hotel decente naquela cidade seria uma tarefa quase impossível. Encontrar uma casa para alugar, que ficasse próxima do hospital, isso sim, seria impossível.  
A mulher continuava lá, parada na minha frente, sem me convidar para entrar. O motorista, atrás de mim, perguntando onde colocar as malas. E eu, entre os dois, imaginando o que fazer. Pensei então, “vou só encontrar um lugar para dormir, e amanhã mesmo, pego o primeiro vôo de volta pra casa”.
Foi quando apareceu  Selma, que trabalhava na casa da vizinha, Cândida,  informando que ela havia viajado de férias com o marido, mas, sabendo que eu chegaria (e provavelmente, já imaginando que tipo de recepção eu teria), deixara ordem para que eu me hospedasse na casa dela, até encontrar um lugar para ficar. Fiquei aliviada e saí da casa do diretor sem ao menos ter entrado,  e finalmente, o motorista do taxi encontrou onde colocar as malas.
Cândida era professora, casada com Oriévilo, médico, também da Fundação SESP.  Estavam viajando, mas logo na semana seguinte retornariam e eu teria que encontrar outro lugar, pois a casa era cheia, com eles moravam as três filhas, uma sobrinha, e Selma, que também tinha um filhinho. A casa era pequena, e de todas da vila, era a mais cheia, não só de pessoas, mas também de vibrações positivas, de acolhimento, de calor humano.
Continuei procurando um lugar para morar, mas a cidade realmente não dispunha de uma pousada ou hotel decente que eu pudesse  ficar, e não existia nenhuma casa disponível para alugar nas redondezas. E assim, fui ficando por lá, enquanto quase todos os dias ligava para a Diretoria Regional, pedindo uma solução (a solução mais viável, seria me transferirem para outro lugar, mas eles não queriam flexibilizar).
Quando Cândida e Oriévilo voltaram das férias, eu continuava lá, e era como se nos conhecêssemos há muito tempo. Passei a chamá-los carinhosamente de “Paizão”e Mãezona”, porque era isso que eles eram para mim. A casa tinha apenas dois quartos e eu dividia um deles com as crianças, que logo se apegaram a mim.
O tempo foi passando, e nossa amizade só crescia. Já não achava mais tão ruim morar em Itaituba, afinal, eu tinha uma família!
Depois de vários meses, finalmente fui transferida para outra cidade, Oriximiná. Apesar de saber que essa era a melhor solução, agora já não estava mais tão certa de querer mudar, mas vi que não poderia ficar indefinidamente ali. A despedida foi difícil, mas prometemos não perder o contato, e assim fizemos, durante muito tempo.
Tempos depois, quando já estava morando no nordeste, recebi a visita deles, e foi como se tivéssemos nos visto há pouco tempo... Depois, com o surgimento da internet, tudo então ficou mais fácil! Eu e Cândida conversávamos quase que diariamente. Falávamos de tudo, coisas sérias, confidências, desabafos, palpites no cardápio de domingo. Às vezes, ficávamos apenas matando o tempo, contando piadas...
Até que um dia, recebi uma noticia que me tirou o chão...  Deus a chamara para junto Dele... Não tive a chance de me despedir. Mas, para que despedida? Continuamos nos falando com frequência, em sonhos, pensamentos... afinal, a nossa amizade é de todas as vidas...
Alguns dias antes da sua partida, recebi uma mensagem dela, que me emocionou. Deixo aqui, para todos verem como ela É especial...

quarta-feira, 25 de maio de 2011

A Primeira Viagem - Entre o Rio e o Céu

Lá estava eu, na sala do Diretor, o papel com a autorização de viagem me queimando as mãos. Meu estágio probatório terminara há umas três semanas, e eu ainda tinha esperanças de que  a Fundação SESP me deixasse mesmo em Santarém. Já tinha me apaixonado por aquela cidade, estava me adaptando bem ao trabalho no hospital, tinha vários amigos e deixara bem claro ao Diretor Regional que gostaria de permanecer ali. O que eu não sabia era que estava usando a tática errada, pois naquela época, o bom Diretor era aquele que fosse o mais carrasco e fizesse exatamente o contrário do que os funcionários desejavam.  Eu deveria ter dito a ele que não queria ficar ali.  Então, naquele dia, meu sonho foi por água abaixo, quando o Diretor me chamou a fim de  informar que chegara a ordem para que eu viajasse no dia seguinte com destino a Itaituba. Eu nunca tinha ouvido  falar nessa cidade, até chegar ao Pará, e não gostei do que ouvi a respeito dela. Cidade que crescia desordenadamente, muitos garimpos, violência explodindo na disputa pelo ouro, sem contar que o custo de vida era altíssimo!
Engoli minha desilusão, afinal, quando me dispus a trabalhar na Amazônia, estava disposta a ir a qualquer lugar. Mas, quando olhei a autorização de viagem e vi bem claro o meio de transporte – fluvial, fiquei gelada. Eu nunca tinha viajado de barco, e, apesar de ser meio aventureira, e achar o rio Tapajós lindo, não me agradava viajar à noite, num barco cheio de garimpeiros mal-educados,  que se achavam os donos do mundo!! A enfermeira já me alertara, pois tinha ido de barco uma vez e de madrugada acordou com um homem querendo deitar na rede dela! (lá, as pessoas viajam em redes, nos barcos). Bati o pé e disse ao Diretor  que não iria de barco, e sim de avião, mesmo que eu tivesse que pagar minha passagem. Mas ele estava irredutível. Tinha que cumprir ordens da Diretoria Regional, e a ordem era para que eu fosse de barco, e ele não poderia se responsabilizar. Esse Diretor era conhecido entre os funcionários como “o carrasco”, e uma vez, colocara falta em si próprio, por ter chegado atrasado ao trabalho, só para dar o exemplo!!
Disse a ele que ligasse para o Diretor Regional e avisasse que eu estava pedindo demissão, que voltaria para casa!! Saí de lá irritada, decepcionada, principalmente pelo fato de ter que ir embora de Santarém. É claro que eu pretendia ainda fazer muitas viagens de barco, mas não naquelas circunstâncias.
Pouco tempo depois, fui chamada novamente à sala da diretoria.  O Diretor falou então que havia ligado para a Regional e que eles haviam reconsiderado o meu caso, e que eu poderia viajar de avião. Não me surpreendi, pois sabia o quanto estavam precisando de médico em Itaituba, e seria, no mínimo, falta de inteligência da parte deles, perder mais um profissional só para não mudar uma ordem de viagem!
No dia seguinte, logo cedo, meus amigos me deixaram no aeroporto, para pegar o meu primeiro vôo pela TABA (Transportes Aéreos da Bacia Amazônica – ou Transportes Aéreos Bastante Arriscados – como era chamada na região). Fiquei pensando se realmente havia agido corretamente, pois viajar de TABA não era também tão seguro, já que eram freqüentes os “pequenos incidentes”. Bom, pelo menos o tempo de exposição ao perigo vai ser menor, pensei, já que o tempo de vôo é bem mais curto, cerca de uma hora de viagem, enquanto de barco, teria que viajar a noite inteira. Despedi-me dos meus amigos, e fiquei lá, esperando o avião , que vinha de Belém. O vôo estava previsto para as 7 horas, e chegou bem no horário.
  Fazia mais de meia hora que o avião estava lá, parado na pista, e nada dos passageiros desembarcarem. Começamos a estranhar essa demora, quando fomos informados que estava havendo dificuldades em abrirem a porta do avião!!!  Depois de muitas tentativas, conseguiram arrombar a porta e os passageiros começaram o desembarque, já suados e estressados pela demora. Passou mais meia hora, uma hora, duas, e nada de nos chamarem para o embarque. E o avião lá, parado na pista,  os mecânicos tentando consertar a porta. Começou a haver um pequeno tumulto no aeroporto, pois os passageiros que iriam embarcar queriam uma explicação por aquela demora. O vôo sairia lotado, em sua maioria por garimpeiros. De mulher, só eu e uma enfermeira que não trabalhava lá, mas estava indo visitar o marido, que também estava no garimpo. E tinha outra mulher, Sandrinha, que depois soubemos ser uma cantora, que estava indo fazer um show num circo da cidade. Sandrinha fez logo sucesso entre os garimpeiros, e andava de um lado a outro do aeroporto, seguida por eles, que aos poucos, com a demora, começaram a se embriagar.
 Já era mais de meio dia, e nada de consertarem o avião. A TABA nos ofereceu almoço, e a essa altura, a maioria dos passageiros já estava totalmente embriagada e de sóbrios só eu, a enfermeira e um rapaz que se juntou a nós. Sandrinha continuava lá, no meio dos garimpeiros, andando de um lado para outro,  parecendo uma cadela no cio...
Finalmente, soubemos que a TABA resolvera mandar vir outro avião de Belém, e já era quase quatro horas da tarde quando finalmente, embarcamos. O sol já estava se pondo quando o avião pousou e eu pisei, pela primeira vez, no solo de Itaituba...

sábado, 21 de maio de 2011

Eu tenho um local...

Dra. Fulana era uma pessoa de um temperamento  intempestivo, dessas que falam primeiro  para depois pensar. Às vezes engraçada, outras,  inconveniente, mas como profissional, era muito competente. Muitas vezes, até era explorada pela comunidade, acostumada a pedir “consultas extras” fora do expediente de trabalho, até mesmo em sua casa, sem cobrar nada.
Trabalhamos juntas em uma dessas cidades por onde andei, Brasil a fora. Trabalhávamos em um hospital, dando plantões e atendendo em ambulatório. No interior, médico não tem essa história de só atender uma especialidade, tem que fazer mesmo de tudo um pouco, atender crise de vermes, mulher gestante, idoso com pressão alta, “bico de papagaio”, “ataque de nervos”, etc, etc.
Numa das vezes em que fazíamos ambulatório, estávamos atendendo em consultórios vizinhos, quando ela me chamou para opinar sobre uma paciente. Era uma adolescente, quase uma criança ainda, acompanhada por sua mãe. Apresentava uma lesão muito suspeita, parecia mesmo uma DST (Doença Sexualmente Transmissível). Ela estava em duvida, pois a menina ainda era quase uma criança...
Ficamos em dúvida, eu e ela, de como abordar aquela mãe, na tentativa de descobrir quais as possibilidades daquilo ser mesmo uma DST. Com muito tato, começamos a indagar sobre os costumes da família, se a casa era muito frequentada, se a menina tinha muitos amigos rapazes, e a tudo a mulher respondia que não. Era uma menina caseira, não gostava de sair, quase não tinha amigos, era tímida...
-  Mas, minha senhora, não tem nenhum lugar que ela vá que seja frequentado por mais gente, especialmente por homens? – perguntou Dra. Fulana.
A mulher ficou pensativa e depois, num impulso, respondeu:
- Ah, lembrei!!! Eu tenho um local...
E antes que a mulher concluísse a frase, a Dra. Fulana olhou para mim e falou:
- Eu não falei?!?!? Ela tem um cabaré!!! Tem uma “casa de recurso”!
Eu gelei, perdi a cor, perdi a fala... E a mulher, coitada, parou, atônita, olhando para nós, com cara de espanto. Eu pensei, “é agora que vamos apanhar”!
Depois de passado o susto, a mulher começou a rir, quase sem conseguir parar, até que por fim falou:
- Não, Doutora... eu tenho um local na feira... uma banquinha de vender verduras, e é muito frequentada...
Ainda bem que a mulher tinha senso de humor, e levou tudo na esportiva!

domingo, 15 de maio de 2011

Uma receitinha, por favor!!

E lá ia o doutor, um amigo meu, cujo nome não vou dizer aqui, descendo a ladeira , rumo ao Hospital onde trabalhava. Ele sempre costumava andar a pé, pois a distância entre o trabalho e sua casa não era tão grande, e assim, já aproveitava para ir fazendo alguma atividade física, além de refletir sobre a vida e economizar combustível. Ficava meio suado, pois o calor  na cidade era insuportável, mas não era problema, assim perdia mais um pouco de calorias. Chegando lá, descansava um pouco em frente a um ventilador, ou então na sala do Diretor, único lugar com ar condicionado, fora o Centro Cirúrgico!  Em seguida, começava sua rotina  no consultório, 20 pacientes ou mais para atender, sem contar que à noite ainda estaria de plantão.
Naquele dia, ia ele apressado, sem olhar para os lados,  remoendo os pensamentos  no sol escaldante de Assu.  Era pouco mais de 1 hora da tarde. Distraído, só percebeu alguém ao seu lado, quando ouviu a mulher  dizer, puxando-lhe pelo braço:
 - Doutor, que bom que lhe encontrei!!! Queria mesmo falar com o senhor, preciso que me passe uma receita!!
Ele então respondeu que ela fosse ao hospital e o aguardasse lá, que ele conversaria com ela, pois ali não teria como consultá-la. Mas ela, insistindo:
- Mas, Doutor, por favor, não é nem consulta, é só uma receita!! Preciso que me passe um remédio para minhas hemorróideas. Se eu for lá, vou ter que entrar na fila, pegar ficha, e o senhor já está aqui...
E ele, andando apressado, voltou a insistir que  não era possível no meio da rua, pois teria que examiná-la, registrar a consulta no prontuário, e ali não era bem um local adequado. Mas ela continuou a insistir, tentando acompanhar  seus passos.
- Doutor, não custa nada, é só uma receitinha para minhas hemorroideas!!!
Ele então, já irritado, parou e olhou para ela:
- Tá bom, minha senhora! Se a senhora quer se consultar aqui mesmo, então vamos lá. Vou te examinar. Tire a roupa para eu poder  ver se a senhora tem hemorroideas mesmo!!
Finalmente ela compreendeu que teria que esperá-lo no hospital...

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Entendendo nossos Hieróglifos

Outro dia, mexendo no “baú de recordações”, encontrei um caderno meu dos tempos de faculdade. Provavelmente, o meu primeiro caderno. Sim, porque a letra ainda era linda, aquela letra digna de uma nota dez no caderno de caligrafia. Não que hoje a minha letra seja ilegível, mas devo reconhecer que mudou bastante! Até parece ‘’letra de médico’’ aquela que é tão criticada por todo mundo, e que gerou até um artigo no Código de Ética Médica, que diz que “é vedado ao médico receitar, atestar ou emitir laudos de forma secreta ou ilegível”.
Hoje, na maioria dos consultórios particulares, os médicos já usam computador e impressora, o que resolve o problema das receitas incompreensíveis. Mas no serviço público, isso ainda é uma utopia, então, nossos colegas que procurem escrever de forma legível. Há um tempo atrás, um colega meu foi abordado por uma paciente para interpretar uma receita que ele mesmo escrevera, e nem mesmo ele conseguiu entender!! Terminou consultando novamente a mulher. Não, minha letra não chega a esse ponto! Apenas estou dizendo que ela já não é mais tão bonita quanto antigamente...
Mas, por que será que a letra dos médicos em geral é tão difícil de entender?
Começa na faculdade. Aulas e mais aulas, tendo que anotar tudo e não perder nenhum detalhe, além do que já tem nos livros.  Depois, quando ingressamos mesmo na vida profissional, continua a correria para dar conta de tudo. Não estou falando em correria para ir de um emprego a outro. Estou falando do excesso de demanda para atender, dos inúmeros relatórios para preencher, formulários, registro em prontuário, receituário, solicitação de exames e etc etc!!
Dando como exemplo uma Unidade de Saúde da Família, onde atendemos pessoas de 0 a 100 anos. Vamos entender um pouco nossa rotina numa segunda-feira, dia em que a prioridade de atendimentos é para o grupo de hipertensos e diabéticos. Entra a primeira paciente, Dona Maria, 60 anos, hipertensa, diabética, portadora também de osteoporose, dislipidemia, e mais uma infinidade de queixas. Então, depois de ouvir a paciente e fazer o exame físico necessário, registro tudo no prontuário. Preencho uma receita para a pressão e o diabetes. Como ela toma dois medicamentos para osteoporose, tenho que escrever  mais duas receitas, pois um ela recebe na Secretaria Municipal de Saúde e outro na Estadual. Para cada um deles, tenho que preencher um relatório, com uma justificativa. Também o medicamento para dislipidemia precisa de mais uma receita e mais um  relatório.   Como está havendo uma epidemia de Dengue, e Dona Maria tem sintomas sugestivos da doença, tenho que solicitar mais exames e também preencher uma ficha de notificação. Enquanto isso, do lado de fora, uma fila de pessoas aguarda, já reclamando da demora da consulta. Considerando que a média de atendimentos é de 16 pessoas por turno, dá para entender porque minha letra mudou?

segunda-feira, 9 de maio de 2011

A viagem quase perfeita

Quem nunca ouviu falar na Zona Franca de Manaus?  Na década de 80, legal mesmo era ir até lá e encher a mala de eletrônicos, já que no comércio normal os preços eram altíssimos! Muita gente viajava para lá exclusivamente pra fazer compras.
Quando morávamos em Monte Dourado, no Pará, eu e meu marido (hoje ex), aproveitamos um feriado de Páscoa para fazer essa tão sonhada viagem. Iríamos ter acesso a todas aquelas maravilhosas novidades que não paravam de surgir!
Na quarta-feira embarcamos num avião da TABA (Transportes Aéreos da Bacia Amazônica), com destino a Santarém. Na região, a TABA era “carinhosamente” chamada de “Transportes Aéreos Bastante Arriscados”, pois era freqüente acontecerem algumas panes durante os vôos. Mas a viagem foi tranquila, e chegamos a Santarém, onde fizemos uma conexão com a VASP, para chegar até Manaus.
Os dias que passamos em Manaus foram maravilhosos. A quinta-feira foi toda dedicada ao comércio. Quantas novidades!! Aproveitamos para comprar tudo o que podíamos, dentro das nossas possibilidades econômicas. Entre as muitas bugingangas, compramos o nosso primeiro vídeo-cassete e a novidade: uma filmadora Panasonic M5, e um monte de fitas VHS!! Eu, que sempre fui apaixonada por tudo que se relacione com imagem, estava radiante!! Nem me incomodava de carregar aquele trambolhão por todos os lugares, o que eu não queria era deixar de filmar nada. Na sexta-feira, feriado, com o comércio fechado, aproveitamos para fazer um passeio de barco pelo rio Negro, com direito a paradinha para fotos com macacos e jibóias. Tudo aquilo me encantava!


No sábado, mais uma passadinha pelo comércio, para as últimas compras, e no domingo fomos encontrar minha amiga Neuly, enfermeira que trabalhou comigo em Oriximiná e que agora morava em Manaus. Foi ela que me ajudou no casamento de Raimunda, contado em outra história.
Depois do almoço, hora de voltar pra casa!  Fomos para o Hotel, e com muita dificuldade, conseguimos fechar as malas, abarrotadas com as compras. Tivemos o cuidado de guardar todas as notas fiscais, pois talvez precisasse apresentar na alfândega. Já no aeroporto, comecei a ter um pressentimento de que algo iria dar errado.  Na fila para o embarque, cada passageiro apertava um botão, e se a luz vermelha acendesse, era preciso abrir a mala e eles conferiam tudo, para ver se havia excesso no limite de compras. Nós não havíamos ultrapassado o limite, mas a mala estava tão abarrotada, que se tivesse que abrir, não sei se conseguiríamos fechar novamente, pois eles faziam uma verdadeira bagunça! Falei para meu marido que iria acender a luz vermelha, quando eu passasse. Ele me chamou de pessimista. Quando ele, que ia na minha frente, apertou o botão, a luz verde acendeu e respiramos aliviados. Mas, na minha vez, como eu previra, acendeu a luz vermelha, e eu gelei! Quem iria arrumar a mala novamente, no meio daquela confusão toda de aeroporto?  Felizmente, quando descobriram que estávamos juntos e que era uma bagagem só, resolveram considerar a luz verde, pois ele havia apertado primeiro. Depois daquele “mini sufoco”, embarcamos no avião da VASP, com destino a Santarém, onde pernoitaríamos, e no dia seguinte retornaríamos de TABA para Monte Dourado. O sol já estava se pondo e já seria noite quando chegássemos a Santarém. Eu continuava com aquele pressentimento de que algo errado iria acontecer.

Já estávamos bem próximo de Santarém e era noite, quando o comandante anunciou que o avião não pousaria lá. Naquela tarde, caíra um temporal sobre a cidade e um raio havia queimado o sistema de iluminação da pista do aeroporto e não havia condições de pouso. O avião passaria direto para Belém, onde pernoitaríamos e no dia seguinte cedo retornaria a Santarém. Como o nosso retorno a Monte Dourado estava marcado para bem cedo,  teríamos que pegar o vôo da tarde, e isso nos faria perder um dia de trabalho. Então pensei, se o pressentimento que eu tivera fosse isso, menos mal.

No dia seguinte, depois de passarmos a noite em Belém, retornamos a Santarém, e ainda deu tempo de visitarmos alguns amigos que tínhamos lá. No inicio da tarde, finalmente embarcamos num avião da TABA, com destino a Monte Dourado. Não sei dizer que tipo de avião era aquele, mas, para mim, era quase um “teco-teco”! Acho que tinha capacidade para,  no máximo,  uns 25 passageiros. Poltronas apertadas, e não havia divisória entre a cabine do comandante e os passageiros, por isso, nós, que sentamos nos bancos da frente, iniciamos logo uma conversa com o comandante e o co-piloto, e eles iam nos contando as aventuras que já tinham vivido na Amazônia, a bordo dos Transportes Aéreos Bastante Arriscados. Aqueles casos em que tiveram que pousar o avião “de barriga”, porque o trem de pouso não descera, ou quando um dos motores do avião parou de funcionar! Casos como esse tinham muitos, e eu escutava, enquanto admirava a paisagem lá embaixo. A tarde estava linda e a selva mais parecia um tapete verde, entrecortada por inúmeros rios, que serpenteavam por entre a mata. Eu, com minha filmadora nova na mão, não deixava escapar nada!!

O avião fez uma escala em Monte Alegre, e o comandante convidou a todos para descerem para um cafezinho!! Acho que demorou uma meia hora, para que decolássemos novamente, agora com destino a Monte Dourado. Começava uma chuva e já estava entardecendo, mas o vôo não seria tão demorado. Eu olhava para baixo e já não enxergava aquele tapete verde, apenas o cinza das nuvens, que pareciam cada vez mais pesadas, mas eu não percebia preocupação por parte dos pilotos. Não me preocupei e continuei com minha filmadora na mão, vez por outra filmando algo, mas a paisagem lá embaixo continuava a mesma. Quando já estávamos próximos de chegar em Monte Dourado, o tempo continuava feio e percebi que os pilotos já não estavam mais tão descontraídos, e não conversavam mais com os passageiros. Falavam em códigos entre si, e eu tentava entender o que eles diziam. Entre outras coisas, entendi que eles haviam perdido o contato com o aeroporto de Monte Dourado, mas, como era dia ainda, iriam pousar usando apenas a visibilidade. Então pensei, que visibilidade?? Ninguém enxergava nada lá embaixo, apenas aquelas nuvens escuras!
Finalmente começamos a avistar a cidade lá embaixo, e por incrível que pareça, não havia nuvens sobre ela. Mas, o aeroporto ficava bem fora da cidade, num planalto, e sobre ele estavam as nuvens, muitas nuvens!!  Voltamos a sobrevoar a cidade e eu olhava para baixo, tentando identificar as casas, as ruas. Vi o Hospital onde trabalhávamos, o supermercado, o Banco, a pracinha, o Beiradão, o rio Jarí...  De volta ao aeroporto, mais nuvens... O comandante tentou uma descida, mas o alarme disparou, avisando que havia obstáculos lá embaixo, e ele ganhou novamente altitude. Desliguei a filmadora e cruzei os dedos. Já tinha rezado umas trezentas Ave-Marias, outros tantos Pai-Nossos! Ninguém falava nada. Mais uma volta sobre a cidade e dessa vez eu vi minha rua. Mais uma vez, o rio Jarí, e dessa vez, eu quase identifiquei as pessoas a bordo dos barcos que atravessavam de um lado para outro do rio. Novamente o aeroporto, e mais uma vez, nuvens pesadas e o som do alarme disparando. A expectativa dentro do avião era grande e já questionávamos por que eles não desistiam e seguiam rumo ao próximo aeroporto, o de Macapá! Ninguém se arriscava a perguntar nada.  Mais uma volta por sobre a cidade... e lá vem o rio Jarí, com suas  “voadeiras” atravessando de um lado para o outro. (Voadeiras era como chamavam os pequenos barcos a motor, que serviam de “taxi”, para as pessoas atravessarem o rio, entre Monte Dourado e o Beiradão).
Depois da quinta ou sexta volta (na verdade, eu perdi as contas), percebi que o comandante falava com alguém pelo rádio. Era um piloto de um avião do Projeto Jarí, que estava em solo no aeroporto e tentava orientar o pouso. Ele informou que a cidade estava sem energia, por isso não conseguiam se comunicar com a torre de controle, e ele estava falando pelo rádio do avião.  Mais uma tentativa de pouso, todo mundo de dedos cruzados, e finalmente pousamos, a salvo,  no aeroporto de Monte Dourado. Respirei aliviada e enquanto descia, perguntei ao comandante por que ele não havia desistido e seguido para Macapá. E ele, com um sorriso, respondeu: “O combustível estava no fim, e na próxima volta, eu iria pousar no rio Jarí”...

domingo, 8 de maio de 2011

O Dia em que ganhei a São Silvestre

Monte Dourado é uma cidade do Pará, que fica às margens do rio Jari, bem na fronteira com o Amapá. Foi construída para ser a sede do Projeto Jarí, pelo bilionário americano Daniel Ludwig.  Morei lá,  entre os anos de  86 e 87. As casas, todas no estilo americano, variavam das mais simples às mais sofisticadas, de acordo com o status de seus moradores, todos funcionários da empresa. As ruas, sem calçamento, eram limpas e bem cuidadas.  A cidade dispunha de tudo um pouco. Um supermercado, um Banco, uma farmácia, uma loja de eletrodomésticos, um hospital, um clube de lazer, ( Jariloca – assim chamada por se assemelhar a uma oca, feita de palha, uma gracinha!!), um restaurante,  e assim por diante.
 Do outro lado do rio, já no Amapá,  fica a Vila Laranjal do Jarí, também chamada  de “Beiradão”, onde se alojavam os funcionários mais simples, os chamados “peões”, e aqueles que não trabalhavam na empresa. Era o oposto de Monte Dourado. Casas construídas sobre palafitas, condições precárias de higiene, mas era um verdadeiro shopping Center. Quase tudo o que não encontrávamos em Monte Dourado, encontrávamos lá, de roupas a materiais eletrônicos.
Eu e meu marido trabalhávamos  no hospital de Monte Dourado há alguns meses. Fazia pouco tempo que havíamos nos casado e sido transferidos para lá.  Morávamos numa casa de classe média, simples, mas bem confortável. Não pagávamos aluguel, pois todas as casas pertenciam ao Projeto Jarí,  e quem trabalhava lá tinha direito de morar de graça.  Em frente  à minha casa, morava Fernando, o anestesista do hospital, e sua mulher Francis. Bem próximo da minha rua, por trás, já era selva. Acordávamos todos os dias com o canto dos pássaros, e era freqüente algum bichinho selvagem invadir a nossa casa de surpresa.
Naquela  noite,  fomos dormir cedo, talvez não fosse ainda 9 horas. Faltara energia na cidade, e, sem muitas opções, depois de um dia cansativo de trabalho, resolvemos ir descansar. Pensei ter dormido por  muito tempo, quando, lá pelas tantas, acordei com um barulho estranho de algo crepitando, algo parecido com estalos de bombinhas de São João. Levantei meio atordoada, e olhando pela janela, vi um clarão, que, a princípio pensei ser o dia amanhecendo. Olhei o relógio e vi que não passava ainda da meia-noite!!
Acordei meu marido e fomos para fora de casa, na tentativa de descobrir o que estava acontecendo.  Ao olhar em direção à mata vimos que estava havendo um incêndio, e parecia ser de grandes proporções. Parecia que a mata toda estava pegando fogo, e o fogo parecia vir em nossa direção! Pessoas passavam correndo de um lado para outro, mas ninguém parava para dizer o que estava acontecendo, se realmente era a mata que estava queimando. O medo tomou conta de mim, e eu só pensava o pior!  O que fazer, naquela situação? Ir para longe, em busca do rio, ou sair em direção ao fogo, saber o que estava acontecendo? Talvez alguém estivesse precisando de ajuda! Num ato de coragem, resolvemos optar pela segunda opção, mas antes, resolvemos acordar Fernando, que, pelo silencio em que se encontrava sua casa, não parecia estar ainda a par da situação. Batemos várias vezes à sua porta, até que ele respondesse com voz sonolenta. “Fernando, acorde, a mata está pegando fogo!! ”  Ele resmungou algo, tipo, “E o que eu tenho com isso?” Mas, quando insistimos em dizer que o fogo estava vindo em nossa direção, e que provavelmente atingiria as nossas casas, pareceu que ele tinha recebido um banho de água gelada. Imediatamente estava ele ao nosso lado, pronto para ir ver direito o que estava acontecendo. Por motivo de segurança, Francis resolveu ficar em casa aguardando, já que eles tinham um filhinho de 2 anos.
Saímos então, eu, meu marido e Fernando, caminhando em direção àquela imensa fogueira. No caminho íamos encontrando pessoas que já vinham voltando apressadas, mas ninguém queria parar para explicar, na verdade, ninguém sabia direito explicar o que estava acontecendo. Algumas pessoas, como nós, também iam em direção ao fogo. Na minha cabeça passavam mil idéias e eu já me imaginava atravessando o rio e indo morar no Beiradão!!
Foi então que aconteceu. Até hoje, não sei explicar direito o que senti!! De repente, aquela explosão, um estrondo imenso!!  Paramos, os três, atônitos, observando aquele imenso cogumelo gigante que surgia no céu. Parecia uma explosão nuclear. Eu só tinha visto algo assim em filmes. Milhões de pensamentos atropelavam minha cabeça. “Vou morrer hoje, sem ver novamente meus pais, sem rever meus amigos e sem voltar pra Paraíba”. E, enquanto estava lá, paralisada, atordoada por esses pensamentos, veio uma segunda explosão! “Pronto, é agora que vou morrer”, pensei! Daí em diante, não raciocinei mais. O sangue congelou em minhas veias, enquanto o calor do fogo aumentava cada vez mais e os estrondos ecoavam em meus ouvidos. O primeiro cogumelo já começava a se dissipar, mas o segundo ainda estava lá, bem desenhado no céu, quando aconteceu o terceiro. Foi demais para mim!! Dei meia volta e não pensei em mais nada, não ouvia mais nada! Corri tanto, como nunca na minha vida! Nunca fui de praticar esportes, às vezes até fugia das aulas de educação física. Mas, nesse dia, eu ganharia a São Silvestre! Meu marido e Fernando corriam atrás de mim, e gritavam para eu parar, mas eu só os ouvia dizerem para  correr mais. E eu corria. E eles não me alcançavam. Passei por minha casa feito uma bala. De longe, avistei um vulto parecido com Francis. Ou não era ela? Não sei mais. Corri mais. Os meus dois companheiros tinham ficado para trás. Foi quando alguém que vinha no sentido oposto esbarrou em mim e me fez parar. Então, os dois finalmente me alcançaram. Eu estava lá, esbaforida, suada, o coração quase saindo pela boca. E eles, rindo de mim, enquanto ofegavam (afinal, estavam em pior forma física do que eu!). Francis veio ao meu encontro e me ofereceu um copo dágua. Nas situações de estresse, nada como água gelada, para acalmar os nervos!

Foi quando alguém que já vinha voltando parou e nos explicou o que estava acontecendo. Era a Jariloca que estava pegando fogo!! Menos mal, pensei, pelo menos não é a mata toda. Durante a falta de energia, alguém havia deixado um liquidificador ligado na cozinha do restaurante. Ao retornar a energia, houve um curto-circuito e bastou uma pequena centelha para que a cozinha, que era toda de palha, começasse a incendiar. Como toda a Jariloca era feita de palha e madeira, bastaram alguns minutos para o fogo se tornar incontrolável. E as explosões eram simplesmente os botijões de gás. Ainda ouvimos mais quatro explosões. Mas, agora, já não me causou mais medo. Apenas fiquei admirando aqueles cogumelos de fogo e desejando estar com uma máquina fotográfica nas mãos, para registrar aquele momento. Graças a Deus, ninguém se feriu. Mas, da Jariloca, só restaram as cinzas. Depois de um tempo, ela foi reconstruída, dessa vez, como na história dos Três Porquinhos, uma casa de tijolos, mais bonita e segura. Mas eu já não estava em Monte Dourado, já havia me transferido para outra cidade...

sexta-feira, 6 de maio de 2011

O Casamento de Raimunda

           Eu trabalhava em Oriximiná, bem no coração do Pará. Na época, para se chegar até lá, saindo de Belém, havia duas opções: ou se ia de barco,  gastando em média, uns três dias de viagem, ou então,  pegava-se  um avião até Santarém, e de lá, um barco, e  gastava-se uma noite inteira viajando pelo rio Amazonas e depois pelo Trombetas, que é um afluente do Amazonas. A distância entre Oriximiná e Belém é maior do que entre Oriximiná e Manaus. Acredito que hoje já exista alguma empresa aérea operando por lá, mas naquele tempo, havia apenas os pequenos aviões particulares.

Eu estava recém-formada e trabalhava num hospital de 30 leitos, junto com outro colega, que tinha acabado de pedir demissão, pois queria ingressar na carreira política! Naquele dia, era o último dia de trabalho dele, e eu estava prestes a ficar sozinha, até que o hospital encontrasse outro médico para substituí-lo. 

Lembro que era hora do almoço, quando fui chamada ao Hospital, para atender uma emergência. Quando cheguei lá, meu colega já estava. Aquela cena me chocou!!  Deitada na maca da sala de emergência, estava uma mulher, Raimunda, na faixa de seus trinta e poucos anos, com a cabeça completamente escalpelada!! (Lembrei daqueles filmes de faroeste, em que os índios escalpelavam os inimigos...). Ao lado dela, o companheiro, Raimundo, segurando nas mãos a linda cabeleira de Raimunda... Raimundo então contou que vinham pelo rio, quando o barco começou a encher de água. A companheira, Raimunda, pegou uma lata e, quando tentava ajudar a esvaziar o barco, baixou a cabeça e seus cabelos enroscaram na hélice do motor... e bastaram alguns segundos para que ela fosse escalpelada. A cabeça de Raimunda sangrava por todos os poros e ela gritava de dor!!

Meu colega e eu não tínhamos muitas opções. Se fosse num grande centro, talvez fosse possível reimplantar o couro cabeludo de Raimunda. Afinal, ele estava praticamente intacto e fazia pouco tempo do ocorrido. Mas, ali, no meio da selva, com poucos recursos, não tínhamos muita coisa a  fazer, a não ser estancar o sangramento e tentar aliviar a sua dor. Levamos Raimunda para o centro cirúrgico, e, sob sedação, fizemos uma limpeza e envolvemos toda aquela superfície cruenta com ataduras. Uma boa cobertura com antibióticos, analgésicos, e tinha início aquela penitência (minha, de Raimunda, e de toda a equipe do hospital), à espera de uma cicatrização por segunda intenção, rezando para que não houvesse uma infecção!! A partir de então, tive que assumir sozinha o caso, pois o meu colega pedira demissão e eu nem tinha ideia de quando viria outro médico para assumir o seu lugar.


Raimunda ficou internada e todos os dias fazíamos o seu  curativo. No inicio, tinha que ser sob sedação, pois era muito doloroso. Esperar que houvesse um processo de cicatrização por segunda intenção seria uma tarefa demorada, e havia ainda o risco de uma infecção. O ideal mesmo seria um enxerto de pele, mas isso teria que ser feito em um centro maior, talvez Belém ou Manaus. E Raimunda era pobre, não tinha dinheiro para o tratamento, muito menos para as despesas da viagem. Naquela época, ainda não existia SUS, e a assistência medica aos mais necessitados era precária. Conseguir vaga em um hospital público era uma tarefa difícil. Quem era cadastrado no INPS tinha mais facilidade e descobrimos que Raimundo, o companheiro dela, era beneficiário, porém, havia um problema: eles não eram oficialmente casados, apesar de viverem juntos há um bom tempo e terem vários filhos. Mas, sem certidão de casamento, Raimunda não poderia ter a carteirinha de dependente de Raimundo!
Eu e a enfermeira, tivemos então uma idéia: se era uma certidão que precisava para que Raimunda pudesse ter essa  carteirinha, faríamos o casamento dela!! Conversamos com Raimundo e ele concordou na hora. O próximo passo foi dar entrada na documentação para que o casamento fosse realizado e toda a equipe do hospital se empenhou numa campanha para angariar recursos para as despesas da viagem. Raimunda iria para Manaus, onde havia uma melhor assistência na área de cirurgia plástica.

Quando a documentação finalmente ficou pronta, o Padre, cujo nome não lembro, foi ao hospital, para a realização da cerimônia, com efeito civil. Raimunda estava toda feliz, com seu curativo na cabeça! A equipe de enfermagem preparou uma comemoração e os convidados éramos nós do hospital e a mãe de Raimunda. Foi tudo muito simples, mas com um grande significado, pois aquele casamento, além de representar a união oficial dos dois, representava também um passe para a conquista da cirurgia de Raimunda! Tudo transcorreu conforme o previsto e alguns dias depois, com a documentação pronta, Raimunda e Raimundo embarcaram para Manaus, num navio catamarã que passava toda semana por Oriximiná, vindo de Belém.

Tempos depois, recebi a visita de Raimunda, já com o seu enxerto de pele realizado e totalmente recuperada. Careca, é certo, mas muito feliz. Foi me agradecer pelo que eu havia  feito por ela e me chamava o tempo todo de ”madrinha”.  Prometi a ela que na primeira oportunidade que tivesse, lhe daria uma peruca de presente. Mas, pouco tempo depois, fui transferida da cidade e nunca mais voltei lá.

Nunca mais tive noticias de Raimunda e Raimundo. Às vezes ainda sinto uma pontinha de remorso, por não ter cumprido a última promessa que fiz a ela, de lhe dar de presente uma linda cabeleira...