quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Perdido na selva - protegido por Deus

      A história que vou contar aconteceu com um amigo meu. Quando o conheci, na época que fomos transferidos da Amazônia para o Rio Grande do Norte, ele vindo do Amazonas e eu do Pará, ele já era “famoso” na Fundação SESP, como o “médico que escapara da selva amazônica”. Na época que chegamos ao Rio Grande do Norte fomos trabalhar em cidades diferentes, e só depois de alguns anos, quando fomos transferidos para a capital, ficamos amigos e um dia ele me contou a história como realmente aconteceu. Espero que minha memória não falhe e eu consiga transmitir aqui tudo o que ele me contou.

      Ilner morava em uma cidade do Amazonas, chamada Boca do Acre. Trabalhava na Unidade Mista da Fundação SESP.  Certo dia, houve um acidente na estrada próxima à cidade, em que faleceram o promotor e seu filho de 12 anos. A filha do juiz, que também viajava com eles, ficou em estado grave, e precisava ser removida para Manaus, pois o hospital local não dispunha dos recursos necessários para tratá-la. A família fretou um taxi aéreo, um avião monomotor de seis lugares, e ele foi o médico escolhido para acompanhá-la na viagem. Somente ele e o piloto, pois os quatro assentos restantes do avião foram retirados para acomodar melhor a paciente.
      A viagem até Manaus foi tranquila, e eles chegaram com menos de quatro horas de vôo. Logo a paciente foi acomodada no Hospital dos Acidentados, e antes de ir para o hotel, ele passou em uma agência da VASP e comprou sua passagem de volta para o dia seguinte. À noite, porém, encontrou com o piloto, que ficou surpreso ao saber que iria retornar sozinho. “O avião foi fretado para que eu retornasse com o senhor a Boca do Acre e eu tenho a obrigação de levá-lo de volta”. Ele ainda questionou que já havia comprado a passagem, mas o piloto insistiu e ele terminou aceitando. No dia seguinte, logo cedo, cancelou a passagem que comprara e perto de meio dia foram para o aeroporto, porém, a liberação do vôo demorou e eles só decolaram já depois das 14 horas. Só depois que estavam em pleno vôo ele ficou sabendo que, para conseguir a liberação,  o piloto informara que o vôo seria para Porto Velho, e não Boca do Acre, pois nesse último o aeroporto não tinha condições de pouso noturno, caso houvesse algum imprevisto. E o imprevisto aconteceu. Duas grandes tempestades fizeram com que o avião saísse da rota, e o piloto ficou perdido, desorientado, sem saber onde estava.
      Já era noite e o piloto informou que iria voar mais alto, pois assim ficava mais fácil de identificar as luzes de alguma cidade. Mas tudo o que conseguiam era ver as estrelas acima deles e a escuridão lá embaixo. Depois de várias horas voando, o combustível acabando, o piloto informou que iriam cair, e deu as instruções de como se posicionar na hora da queda, o que levaria alguns minutos. Enquanto o avião planava, perdendo altura, ele se lamentava e se desculpava o tempo todo por ter feito o doutor mudar de ideia para viajar com ele. Por volta das nove horas da noite, o avião caiu.
      Ilner acordou no chão, a alguns metros do avião. Os faróis ainda acesos iluminavam a selva. Tentou se levantar, mas não conseguiu, pois sentia fortes dores e ao palpar o tórax, sentiu que havia quebrado algumas costelas. Mas estava respirando bem, o que indicava que provavelmente não tinha havido perfuração pulmonar. Chamou pelo piloto, mas não houve resposta, apesar de ouvir algum barulho vindo do avião. Então resolveu dormir ali mesmo, no chão.
      Quando amanheceu, com muito esforço, ele conseguiu se levantar, ainda meio tonto, segurando-se em algumas árvores. Sentiu que também sangrava pelo supercílio, mas não era um corte muito profundo. Conseguiu chegar até o avião e percebeu que o piloto estava vivo, porém semi-consciente, muito agitado e sangrando muito pelo nariz e ouvido, o que significava que tinha havido traumatismo craniano. Ele tinha alguma medicação de urgência e aplicou no piloto, porém o quadro se agravava cada vez mais. Tinha também alguns frascos de soro glicosado, e de vez em quando fazia com que ele  bebesse um pouco, mas isso não adiantava muito, cada vez mais ele piorava e ia aos poucos perdendo os reflexos.  Assim ele passou o domingo, e no dia seguinte, logo cedo, o piloto faleceu.
      Não tendo mais o que fazer, e sentindo que não seria encontrado, pois a mata era completamente fechada e dificilmente o avião seria visto lá de cima, resolveu sair em busca de ajuda, rezando para não encontrar alguma onça, cobra ou outra fera  pelo caminho. Não levavam comida no avião e ele pegou apenas sua mochila com algumas roupas e seus documentos . Sua esperança era encontrar algum rio, pois assim ficaria mais fácil de encontrar alguém. Durante vários dias caminhou na selva, com fome, pois não sabia quais as raízes de plantas eram comestíveis. Encontrou muitos açaizeiros, mas não tinha como cortar o palmito, nem como subir para cortá-los na parte de cima, por causa das costelas fraturadas. Quando sentia sede, bebia a água da chuva acumulada nas folhas das plantas. Uma certa vez, percebeu que estava andando em círculos, pois encontrou uma camisa encharcada de sangue que deixara no dia anterior, quando trocou para se livrar das mutucas que o atacaram.
      No final da tarde da quinta-feira, caminhando no meio de um seringal nativo, avistou uma vala e quando se aproximou, viu que tinha uma pequena poça de água. Era um “olho d’água”!! Como já era quase noite, resolveu dormir ali mesmo. No dia seguinte, caminhou seguindo o trajeto da água, que terminou se transformando num igarapé!
      Seguiu o tempo todo o igarapé, às vezes tendo que caminhar dentro da água,  até que no final da tarde, teve a maior emoção da sua vida: encontrou um rio! O sol estava se pondo, e o céu estava lindo, com cores vermelho e laranja refletindo na água do rio, e aquele por do sol foi o mais lindo que ele já vira na sua vida! Rezou, agradecendo a Deus pela graça alcançada, e pedindo que aparecesse alguém para salvá-lo. Ficou ali, onde dormiu, para no dia seguinte continuar sua caminhada. Suas esperanças estavam renovadas, pois com o rio, certamente a qualquer hora ele encontraria alguém!
      No sábado, caminhou o dia inteiro seguindo a margem do rio, e não encontrava ninguém! No final da tarde, cansado e fraco, pois já era o sétimo dia que estava sem se alimentar, sentou à margem do rio e rezou mais uma vez, pedindo a Deus que mandasse alguém. Já estava quase cochilando quando escutou o barulho de um motor de barco. Era um barco pequeno e ele começou a gesticular, mas o homem parecia que não ia parar. Felizmente o rio era estreito e ele conseguiu se identificar, dizendo que era médico e que tinha sofrido um acidente de avião, e que precisava de ajuda.  O homem, que já estava sabendo do acidente,   se aproximou e disse:
      - Ainda bem que o senhor se identificou, senão eu não teria parado. Como aqui é uma área desabitada, é muito comum bandidos brigarem em  outra região e virem se esconder por aqui. E sua aparência não está das melhores, com esse olho roxo e sujo de sangue, poderia muito bem ter saído de uma briga...
      Ilner agradeceu e pediu ao homem que o levasse à cidade mais próxima, mas ele disse que o levaria até a casa de um seringalista, pois a cidade mais próxima ficava há vários dias de viagem de barco. Perguntou se estavam no Amazonas e ele disse que sim, e a cidade mais próxima era Carauari, e levariam mais de uma semana para chegar até lá.
      Chegando à casa, foram acolhidos pelo seringalista, que já estava sabendo do acidente, porém, segundo ele, as buscas estavam sendo realizadas em outra região.  Ainda demorou mais de uma semana, para que Ilner chegasse à cidade de Carauari. De lá, conseguiu se comunicar com a Coordenação Regional da Fundação SESP, pedindo que avisasse à sua família que estava vivo. Viajou no avião da TABA até Manaus, onde foi recebido pelo diretor regional do SESP e por uma infinidade de repórteres.
      Somente setenta dias depois do acidente, seringueiros contratados pela empresa de táxi aéreo encontraram os destroços do avião e os restos mortais do piloto.



( Em memória de Ilner Coelho, que faleceu em 2003, vítima de um Infarto Agudo do Miocárdio)

8 comentários:

  1. Muito bom, mãe! :) Não sabia essa história! :)

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  2. Que história emocionante! E que essa sua memória não falhe nunca!!

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  3. Eu conheço parte dessa história! Meu marido é o filho mais novo do promotor que faleceu nesse acidente.Não sabia desse acidente com o piloto...mais uma morte decorrente do primeiro acidente! Triste!..Pena que o testemunha de tudo isso ja partiu...DR.Ilner.

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    1. Meu nome é Tania Baggio sou irmã da Carla filha do Juiz, graças á Deus ela sobreviveu ao acidente,reside em Manaus, sofremos muito na época,não sabiamos como agradecer ao Dr Ilner porque nunca mais tivemos noticias dele e nem da Familia do Promotor cujo meu pai era muito amigo e tinhamos o maior respeito,sentimos muito pelo falecimento do Dr Ilner, tenho certeza que ele esta descansando em um lugar muito melhor porque foi com certeza um grande médico e um grande homem...muito obrigada em nome de toda minha Familia

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  4. Eu conheci o Dr. Ilner em Parintins-Am quando tinha 8 anos e fui acometido de apendicite. Foi o médico que descobriu que a mesma estava para estourar e me redirecionou para a cirurgia. Minha amiga ficou muito amiga dele. Em 82 ele morava em Manacapuru e sempre fazíamos visita a sua casa, eu já com 11 anos as vezes até ficava na casa dele e com sua esposa quando meus pais viajavam, eram pessoas maravilhosas. Depois em 83 nos mudamos e perdemos contato. Senti uma extrema necessidade ao reencontrar estes amigos e fui procurar na internet pelo nome e história, e aqui cheguei. Muito triste saber que esta excelente pessoa que era o Dr. Ilner faleceu, pois mais uma vez queria dizer muito obrigado a ele. Saudades desta pessoa que foi uma pessoa muito amiga ...

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  5. Meu nome e Artur Pojo. Conheci o Dr Ilner em 1978 no Rio de Janeiro. Meu irmao Daniel Pojo era colega dele de residencia medica no Hospital Silvestre e compartilhavam um apartamento, cedido pela obra do hospital, na rua Siqueira Campos em Copacabana.
    Consegui alugar um apartamento tambem na Siqueira Campos. Ficamos vizinhos e meu irmao passou a morar conosco. Eu, minha mulher Rosangela e nesse tempo a unica filha Aruanda de 3 anos. De vez em quando nos reuniamos em casa num almoco paraense aos domingos. Muitas conversas e estorias.
    Depois do acidente ele nos visitou no Rio e contou a sua estoria de sobrevivencia na selva. Lembro ter perguntado como dormia? Subia nas arvores? "Que nada..muito cansado, deitava e dormia. Rezando pra nao ser incomodado pelos animais que faziam seus roncos na noite..".
    Depois perdemos o contado. Seguimos nossas direcoes e numa mais nos encontramos. Lamentamos sua morte.Meu irmao Daniel faleceu em 1979.

    Agora com o desaparecimento do aviao bimotor no dia 18 de marco aqui no Para falava da dificuldade de localizacao da aeronave. Entrando na selva fica totalmente escondido e se nao tiver moradores por perto para dar uma sugestao de proximidade a procura pode demorar muitos dias ou meses..Citando a estoria do amigo Ilner me faltou alguns detalhes na memoria. Lembrei logo de pesquisar no google quando descobri o seu excelente relato "Perdido na selva - protegido por Deus". Um alivio, antes que falhe a memoria, ler este documento eternizando a estoria.

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  6. Se não me falha a memória, na década de oitenta, eu li esta história e agora fiquei de veras feliz por reler a história da bravura deste médico (infelizmente saudoso), em busca de sobrevivência, e a fé em Deus. Pelo pouco que sei, já é o bastante para dizer: Descanse em paz, DOUTOR ILNER COELHO!

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  7. Renyrenygraziele2512@gmail3 de dezembro de 2018 às 09:27

    Hoje tive conhecimento desse acidente com o Dr.Ilner contado pelo seu amigo e médico da UBS onde trabalho, Dr.Augusto César de Miranda,foi emocionante ouvir sobre a sua história

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