sexta-feira, 6 de maio de 2011

O Casamento de Raimunda

           Eu trabalhava em Oriximiná, bem no coração do Pará. Na época, para se chegar até lá, saindo de Belém, havia duas opções: ou se ia de barco,  gastando em média, uns três dias de viagem, ou então,  pegava-se  um avião até Santarém, e de lá, um barco, e  gastava-se uma noite inteira viajando pelo rio Amazonas e depois pelo Trombetas, que é um afluente do Amazonas. A distância entre Oriximiná e Belém é maior do que entre Oriximiná e Manaus. Acredito que hoje já exista alguma empresa aérea operando por lá, mas naquele tempo, havia apenas os pequenos aviões particulares.

Eu estava recém-formada e trabalhava num hospital de 30 leitos, junto com outro colega, que tinha acabado de pedir demissão, pois queria ingressar na carreira política! Naquele dia, era o último dia de trabalho dele, e eu estava prestes a ficar sozinha, até que o hospital encontrasse outro médico para substituí-lo. 

Lembro que era hora do almoço, quando fui chamada ao Hospital, para atender uma emergência. Quando cheguei lá, meu colega já estava. Aquela cena me chocou!!  Deitada na maca da sala de emergência, estava uma mulher, Raimunda, na faixa de seus trinta e poucos anos, com a cabeça completamente escalpelada!! (Lembrei daqueles filmes de faroeste, em que os índios escalpelavam os inimigos...). Ao lado dela, o companheiro, Raimundo, segurando nas mãos a linda cabeleira de Raimunda... Raimundo então contou que vinham pelo rio, quando o barco começou a encher de água. A companheira, Raimunda, pegou uma lata e, quando tentava ajudar a esvaziar o barco, baixou a cabeça e seus cabelos enroscaram na hélice do motor... e bastaram alguns segundos para que ela fosse escalpelada. A cabeça de Raimunda sangrava por todos os poros e ela gritava de dor!!

Meu colega e eu não tínhamos muitas opções. Se fosse num grande centro, talvez fosse possível reimplantar o couro cabeludo de Raimunda. Afinal, ele estava praticamente intacto e fazia pouco tempo do ocorrido. Mas, ali, no meio da selva, com poucos recursos, não tínhamos muita coisa a  fazer, a não ser estancar o sangramento e tentar aliviar a sua dor. Levamos Raimunda para o centro cirúrgico, e, sob sedação, fizemos uma limpeza e envolvemos toda aquela superfície cruenta com ataduras. Uma boa cobertura com antibióticos, analgésicos, e tinha início aquela penitência (minha, de Raimunda, e de toda a equipe do hospital), à espera de uma cicatrização por segunda intenção, rezando para que não houvesse uma infecção!! A partir de então, tive que assumir sozinha o caso, pois o meu colega pedira demissão e eu nem tinha ideia de quando viria outro médico para assumir o seu lugar.


Raimunda ficou internada e todos os dias fazíamos o seu  curativo. No inicio, tinha que ser sob sedação, pois era muito doloroso. Esperar que houvesse um processo de cicatrização por segunda intenção seria uma tarefa demorada, e havia ainda o risco de uma infecção. O ideal mesmo seria um enxerto de pele, mas isso teria que ser feito em um centro maior, talvez Belém ou Manaus. E Raimunda era pobre, não tinha dinheiro para o tratamento, muito menos para as despesas da viagem. Naquela época, ainda não existia SUS, e a assistência medica aos mais necessitados era precária. Conseguir vaga em um hospital público era uma tarefa difícil. Quem era cadastrado no INPS tinha mais facilidade e descobrimos que Raimundo, o companheiro dela, era beneficiário, porém, havia um problema: eles não eram oficialmente casados, apesar de viverem juntos há um bom tempo e terem vários filhos. Mas, sem certidão de casamento, Raimunda não poderia ter a carteirinha de dependente de Raimundo!
Eu e a enfermeira, tivemos então uma idéia: se era uma certidão que precisava para que Raimunda pudesse ter essa  carteirinha, faríamos o casamento dela!! Conversamos com Raimundo e ele concordou na hora. O próximo passo foi dar entrada na documentação para que o casamento fosse realizado e toda a equipe do hospital se empenhou numa campanha para angariar recursos para as despesas da viagem. Raimunda iria para Manaus, onde havia uma melhor assistência na área de cirurgia plástica.

Quando a documentação finalmente ficou pronta, o Padre, cujo nome não lembro, foi ao hospital, para a realização da cerimônia, com efeito civil. Raimunda estava toda feliz, com seu curativo na cabeça! A equipe de enfermagem preparou uma comemoração e os convidados éramos nós do hospital e a mãe de Raimunda. Foi tudo muito simples, mas com um grande significado, pois aquele casamento, além de representar a união oficial dos dois, representava também um passe para a conquista da cirurgia de Raimunda! Tudo transcorreu conforme o previsto e alguns dias depois, com a documentação pronta, Raimunda e Raimundo embarcaram para Manaus, num navio catamarã que passava toda semana por Oriximiná, vindo de Belém.

Tempos depois, recebi a visita de Raimunda, já com o seu enxerto de pele realizado e totalmente recuperada. Careca, é certo, mas muito feliz. Foi me agradecer pelo que eu havia  feito por ela e me chamava o tempo todo de ”madrinha”.  Prometi a ela que na primeira oportunidade que tivesse, lhe daria uma peruca de presente. Mas, pouco tempo depois, fui transferida da cidade e nunca mais voltei lá.

Nunca mais tive noticias de Raimunda e Raimundo. Às vezes ainda sinto uma pontinha de remorso, por não ter cumprido a última promessa que fiz a ela, de lhe dar de presente uma linda cabeleira...

8 comentários:

  1. Ai amiga que linda história!!! adorei..vc e suas lendas heim? nunca conheci ninguém assim..parabéns...bjos quelzinha.

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  2. Menina, tá arrasando na escrita! Parabéns!
    bj Lili

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  3. Oi Verônica!!! amei a história, a maneira simples e direta da narrativa e o resgate fotográfico. como falei antes, todo fotógrafo escreve com imagem. e vc agora fotografa com as palavras... Sucesso.

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  4. nossa veronica vc tem muito o que contar hein,nessea anos de profissão,parabens pela competençia que vc teve com a raimunda.

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  5. Oi amiga!!! adoro suas histórias,fico ansiosa por
    mais...vc tem uma memória privilegiada que eu sei.
    Parabens amiga, adoro você com suas histórias, suas risadas,suas birras, suas conversas, seu jeito simples de ser...
    Bjos.

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  6. Verônica!!!! ...e eu me achava aventureira! Adorei o seu jeito de escrever: emocionante, engraçado, envolvente... Sou sua fã!
    Bjos

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  7. Vai ficar rica qdo virar minisérie,diga aí????

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  8. Enviei seu e-mail para Luiz Fernando Carvalho.
    Se o destino precisar de uma forcinha eu já fiz minha parte...bjus

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